Com elenco “europeizado”, Brasil é exemplo de seleção sem identidade
Os brasileiros conhecem pouco a Seleção Brasileira, mas este fenômeno está longe de ser exclusivamente nacional. A Copa do Mundo de 2022 é a mais “europeizada” da história, aponta um levantamento do Observatório da Política Externa, formado por professores e estudantes de Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC).
Os pesquisadores lembram que a Europa responde por apenas 13 das 32 seleções que chegaram à Copa, o equivalente a 40,7% das equipes. Mas foi de clubes europeus que saíram 72,3% dos jogadores convocados. De um total de 831 atletas que foram ao Qatar para disputar o Mundial, nada menos que 601 atuam em clubes do Velho Continente. É o caso de 112 jogadores das Américas (sendo 84 latino-americanos e 32 de EUA/Canadá), 97 da África, 40 da Ásia e 15 da Oceania.
Só na Inglaterra, por exemplo, jogam 158 craques relacionados para esta Copa. Há também 87 jogadores de clubes da Espanha, 80 dos alemães, 68 dos italianos e 57 dos franceses. Ao atraírem tantos atletas de alto nível, as ligas desses países parecem fortalecer as próprias seleções. A Itália, que não se classificou para o Mundial-2022, é exceção.
A surpresa com o jogador Richarlison é um exemplo da desconexão entre a Seleção e o povo brasileiro. Ao fazer os dois gols da vitória do Brasil contra a Sérvia, no jogo de estreia dos dois países na Copa, o atacante virou uma celebridade instantânea. Ele também ganhou mais seguidores nas redes sociais porque, do nada, descobriram que ele é um raro caso de boleiro brasileiro consciente e progressista.
Só que o mesmo Richarlison já havia sido o artilheiro e principal jogador do Brasil na conquista do bicampeonato olímpico, nos Jogos de Tóquio-2020 (realizados em 2021). Pela seleção principal, o atleta já somava, antes da Copa, 17 gols em 37 jogos. Não se tratava, portanto, de um novato. Seu caso em nada lembra a badalação em torno de atacantes que, já conhecidos e celebrados no Brasil, chegaram a edições anteriores do Mundial – como Careca, Bebeto, Romário e Ronaldo.
O estudo do Observatório da Política Externa reflete sobre as origens do “êxodo da América Latina para a Europa”. Conforme os pesquisadores, um ponto de partida foi a Lei Bosman, de 1995, que autorizou os clubes europeus a terem quantos atletas bem entendessem. No Brasil, hoje, um time pode ter no máximo cinco estrangeiros. Na Europa, vale tudo. Com a Lei Bosman, “passou-se a considerar a cidadania europeia como mandatória nessa dinâmica. Logo, um atleta francês, por exemplo, não ocuparia uma vaga de estrangeiro ao se transferir para um time alemão”.
A mudança atraiu cada vez mais atletas de outros continentes. “Com essa unificação das nacionalidades em uma só, abriram-se vagas para estrangeiros em todos os clubes da Europa”, explica o Observatório. “No bojo da ascensão econômica de seu futebol, os times do velho continente passaram a contratar jovens talentos de todo o globo, afetando principalmente países que tradicionalmente revelaram grandes jogadores, a maioria deles na América Latina e na África”.
O impacto dessa revolução é visível no Mundial do Qatar. As seleções latino-americanas são formadas, todas, por elencos majoritariamente “europeizados”. Na Seleção Brasileira, 23 dos 26 convocados atuam em clubes europeus e só três jogam no Brasil. “A última vez que a Seleção teve mais jogadores que atuavam no Brasil foi em 2002, com 13 nomes”, indicam os pesquisadores.
No Qatar, o Brasil pode conquistar o hexacampeonato com essa contradição: nem o povo brasileiro conhece razoavelmente a Seleção Brasileira, nem os jogadores parecem ter noção do que é realmente o Brasil. Resta a torcida apaixonada do povo – esta, sim, genuinamente brasileira.