Esquerda subestima direita chilena e perde chance de enterrar entulho neoliberal
A rejeição ao texto constituinte pela população chilena foi um choque para a esquerda e deve reverberar por muito tempo, para além do governo de Gabriel Boric. Segundo o jornalista e secretário-geral da Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade ao Povos e Luta pela Paz), Wevergton Brito Lima, este foi um fato com simbologia e significado político tão contundente, que não se restringe ao governo.
Vai ser preciso análises aprofundadas, tempo histórico e digerir melhor o que aconteceu. De acordo com ele, um observador da geopolítica na América Latina, de longe só podemos apontar impressões, sem querer dar lições à esquerda chilena.
De qualquer forma, é possível sentir daqui a decepção com o governo que mal começou. Depois de amplas e tumultuadas manifestações populares, 78% do eleitorado votando e aprovando a formação da Assembleia Constituinte para enterrar a constituição do Pinochet, chegamos aos 62% de rechaço ao novo e avançado texto, contra 38 de aprovação.
“É a primeira vez que o trabalho de uma Constituinte é rejeitada pelo povo. Nunca aconteceu isso antes”, alarma-se Lima. Na opinião dele, os números não deixam margem à dúvida da dimensão da derrota, devido a forte participação e mobilização da população para rejeitar o trabalho dos parlamentares.
Outra coisa que ele considera importante avaliar é que tem algo mais que apenas o clima de desinformação e fake news patrocinado pela direita. “O fato da direita se mobilizar para derrotar a Constituinte era previsível e não dá pra dizer que fomos pegos de surpresa”, observou, lembrando que, além de um texto avançado, a maioria formada na Constituinte era de esquerda antineoliberal.
Estratégia do medo e da divisão
“O inimigo fez o papel dele. Usou todas as técnicas da guerra midiática atual, nas redes sociais, com mentira e distorção”, ponderou o jornalista. A centralidade da argumentação de direita esteve na estratégica de medo diante da possibilidade do Chile se dividir, deixar de ser um estado unitário.
“Não quero reduzir a isto, mas quando vi que a Constituinte estava propondo a mudança do nome do país, de República do Chile para República Plurinacional do Chile, imaginei que isto seria uma bandeira da direita. Não é verdade, mas abre brecha para esse discurso”, disse. Assim, a direita usou o patriotismo contra a Constituição, dizendo que o Chile seria fragmentado.
Lima diz que este aspecto das populações indígenas é diferente no Chile, em relação a Bolívia, outro estado plurinacional. As lutas na Bolívia tiveram outra característica e a esquerda chilena tentou transpor de forma apressada questões complexas para seu país.
Ele se pergunta se, num país conservador como o Chile, seria essencial mudar o nome do país, como se isso fosse fazer avançar a luta social e por direitos? “Não quero ensinar o padre a rezar, pois a esquerda do Chile sabe onde aperta o calo. Mas, o principal era derrotar o entulho neoliberal, que não garante proteção social adequada para os trabalhadores”, analisou ao constatar que, com a vitoria do rechaço, o que prevalece agora é a constituição do ditador Augusto Pinochet.
Fortalecimento da direita
Ele considera que, diante de tanta energia revolucionária despejada nas mobilizações populares, desde 2019, passando pela formação da Assembleia e a eleição de Boric, a esquerda acabou subestimando o papel da direita na campanha constituinte, achando que o jogo estava ganho. “Os grandes cartéis de previdência privada no Chile, que condenam os aposentados a uma vida de miséria, se mobilizaram e controlam a mídia hegemônica”, disse.
Um dos capítulos mais avançados da Constituinte, destaca ele, foi sobre regulação da comunicação. “Regular para dar mais pluralidade, sem monopólio das grandes redes. Isso também mobilizou toda a mídia contra o texto e contribuiu para a derrota”, completou.
Embora a vitória de Gabriel Boric tenha sido muito importante, de acordo com Lima, ele representa uma esquerda muito moderada, com dificuldades de enfrentamento de fundo e de concepções políticas. Ao convidar favoráveis e contrários para uma conversa, Boric viu o Chile Vamos, setor mais a direita, ignorar sua convocatória.
Como um novo texto constitucional é impositivo, depois o Chile Vamos veio defender a continuidade do processo com um comitê de especialistas ou parlamentar, em vez de eleitos pela população. Isso, inevitavelmente vai levar a uma Constituição muito menos avançada, explica ele, pois a direita tem uma relativa maioria. “A verdade é que a direita sai fortalecida e uma nova Constituição será menos avançada com poucas transformações estruturais”.
Para o jornalista, Boric é um governo que só vai promover avanços se tiver mobilização popular. Sem pressão popular, ele teria força e convicção para enfrentar a direita que considera que o Chile está bom como está. “Uma elite totalmente apartada do povo”, resume.
(por Cezar Xavier)