Como a positividade afeta a transformação social

Segundo Karl Marx, o materialismo histórico-dialético estabelece que a história da humanidade é atravessada pela luta de classes. São necessários os proletários e os detentores do capital para que exista uma tensão entre essas forças opostas e, a partir de uma síntese, surja um processo transformador. A negatividade, o contraditório, o oposto, é, portanto, um vetor essencial das mudanças. Contudo, em um mundo saturado de positividade, como afirma Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço, somos inundados por falsas esperanças e promessas de liberdade e realização. “Podemos tudo”, mas, ao mesmo tempo, nada se concretiza. Essa ilusão de potência leva à estagnação. Dizem-nos que não existem mais soluções para as mazelas que enfrentamos.

Sem o embate entre forças opostas, não há síntese. Como diria Hegel, sem o contraditório, o devir, o vir-a-ser, não acontece. A luta política perde sentido: não há mais nada a fazer. Em um cenário em que o conflito e a negação são abolidos, os processos revolucionários tornam-se inviáveis.

Pensando com Hegel, o ser é o mundo atual, capitalista e desigual. O nada representa a sua negação: a crítica, a insatisfação, a recusa em aceitar esse estado como definitivo. O devir é o movimento histórico das lutas sociais, onde ser e nada se enfrentam e se transformam, gerando uma nova realidade possível: uma sociedade mais justa e emancipada. Essa nova realidade é a Aufhebung: a superação dialética que nega, conserva e eleva ao mesmo tempo.

A materialização da dialética se dá na luta entre capital e trabalho. A negatividade é a força motriz da revolução. Precisamos repensar as relações entre trabalho e capital no contexto de uma sociedade adoecida. Hoje, o antagonismo externo se perde diante da positividade exacerbada. Essa positividade, autoimposta, adoece e esgota, representando o fim dos processos revolucionários.

Nos tempos modernos, o trabalho sem negatividade clara, tais como, como nas plataformas Uber e iFood, esvazia o motor das lutas sociais. Se não existe um “patrão” visível, pois somos “empreendedores de nós mesmos”, não há alvo para o antagonismo. Bombardeados por algoritmos e pela ideologia de que “podemos tudo”, ficamos imobilizados. A positividade despolitiza.

Assim, o ser torna-se soberano, mergulhando-nos em um nada sem sentido. O capital reina, pois o trabalho não reconhece quem o oprime. O devir não pode emergir, porque não há conflito real. É como um casamento entre estéreis: nada nasce. A negatividade é afastada, e nos tornamos seres da positividade.

Para resistir, é preciso recuperar o contraditório. Devemos conviver com a tensão sem anulá-la. É urgente repolitizar o que foi despolitizado: o trabalho, o acesso à tecnologia, a desigualdade. A sociedade do cansaço aboliu o “outro”. Todos devem concordar, performar, vencer. Precisamos resgatar o direito de dizer “não”. A divergência deve voltar a ser um princípio.

David Santos Rodrigues é militante do PCdoB de João Pessoa-PB