Sob pressões crescentes e cada vez mais constrangedoras, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não disputará mais a reeleição à Casa Branca. A desistência abre caminho para que a vice-presidenta, Kamala Harris, herde a candidatura do Partido Democrata e desafie o ex-presidente Donald Trump nas eleições de 5 de novembro.

Pesquisas de intenção de voto que já testaram o provável confronto apontam para um cenário equilibrado, com ligeira vantagem para o candidato do Partido Republicano. De acordo com a CNN – que comparou seis levantamentos nacionais feitos desde o final de junho –, Trump tem, em média, 48%, contra 47% de Kamala.

Embora não se possa cravar o ex-presidente como favorito – a despeito de sua candidatura muito mais adiantada e consolidada –, a sensação é a de que os democratas ganharam uma sobrevida eleitoral. O “timing” do anúncio da retirada de Biden pareceu acertado: o noticiário, até então centrado em pautas favoráveis a Trump (ou negativas para os democratas), mudou de imediato.

Voto feminino

Uma das boas novas para o partido foi o volume recorde de doações a Kamala nas primeiras 24 horas após divulgação da carta em que Biden torna pública sua desistência. Numa demonstração de competitividade, a vice-presidenta arrecadou US$ 81 milhões (o equivalente a, aproximadamente, R$ 450 milhões). Dos 888 mil doadores, cerca de 60% jamais haviam destinado recursos a uma campanha eleitoral.

É um bom ponto de partida para a “marca Kamala”, que precisa se consolidar até a Convenção Nacional do Partido Democrata, prevista para 19 de agosto. Mas, numa eleição tão acirrada, não faltarão lobbies para os focos de sua candidatura. Uma mulher negra de 59 anos, bem-sucedida nos meios jurídicos e políticos, tem novos atrativos a expor.

O voto feminino – ainda mais numa disputa contra Trump – certamente será uma das prioridades. Há quatro anos, quando foi declarada oficialmente a primeira vice-presidenta eleita dos EUA, Kamala dedicou parte de seu discurso da vitória às norte-americanas. “Posso ser a primeira mulher neste cargo, mas não serei a última. Toda garotinha que está nos vendo hoje perceberá que este é um país de possibilidades”, afirmou a democrata em Wilmington, no Delaware, na noite de 7 de novembro de 2020.

O fator Biden

Porém, ao longo de mais de três anos como a número 2 da Casa Branca, Kamala fugiu de pautas relacionadas à inclusão, como a relativa aos imigrantes. Mesmo sendo filha de um jamaicano e uma indiana que se conheceram nos Estados Unidos e fizeram carreira no meio acadêmico, a vice-presidenta preferiu ignorar o tema – o que pode lhe custar votos fundamentais. A nomeação como candidata é uma oportunidade para que reveja sua omissão.

Mas nenhuma decisão será mais complexa do que avaliar em que medida Joe Biden deve participar da corrida eleitoral. Em quatro anos, o capital do presidente murchou dramaticamente. Em 2020, ele venceu as primárias de modo contundente e, ao longo da campanha, comprovou ser o único nome democrata capaz de derrotar Trump.

No pleito à Casa Branca com a maior participação eleitoral na história norte-americana, Biden amealhou 81,2 milhões de votos – um recorde monumental. Só que Trump, mesmo derrotado, viu seu desempenho saltar de quase 63 milhões de votos em 2020 para 74,2 milhões em 2024. Não havia margem para que uma alternativa mais progressista, como o senador Bernie Sanders, da “esquerda” do Partido Democrata, o derrotasse.

Adversário dos sonhos

Quatro anos depois, o jogo mudou. Biden era o adversário dos sonhos de Trump em 2024 – e boa parte disso se deve ao modesto e controverso legado de sua administração, bem como aos deslizes do presidente em eventos públicos. Em sua busca pela reeleição, ninguém jogou mais contra Biden do que ele próprio.

O envolvimento ostensivo dos EUA na guerra na Ucrânia e no genocídio promovido por Israel em Gaza, a ineficácia de sua ofensiva comercial contra a China, os resultados econômicos pífios – tudo isso pesa contra o atual titular da Casa Branca. O discurso frágil, sem novos e ousados compromissos após quatro anos de poder, também conta.

A isso se somou seu péssimo desempenho no primeiro e único debate em rede nacional contra Trump, além da sucessão de gafes em pronunciamentos públicos. Até que ponto a presença de Biden é – para usar um termo da moda – “tóxica” para Kamala? Como reivindicar os avanços da gestão sem se contaminar ou chamuscar pelas infindáveis polêmicas do presidente?

Perspectivas

Encontrar esse meio-termo talvez seja o principal desafio da iminente candidata democrata. Assim como houve uma frente ampla e democrática no Brasil, em 2022, para impedir a continuidade de Jair Bolsonaro no Planalto, o desafio de Kamala é sensibilizar os eleitores norte-americanos e construir uma grande frente contra a volta de uma extrema-direita golpista e antidemocrática ao poder.

Biden não foi capaz de viabilizar essa frente. Kamala, uma vice apagada, de baixo perfil, foi convocada à missão. Os EUA – nós sabemos – costumam eleger um presidente com o qual ou sem o qual o sistema permanece tal e qual. Das grandes economias, a norte-americana talvez seja a única em que, devido à força do establishment, nenhum chefe de Estado consiga alterar essa ordem dos fatos.

Em confronto com Trump, Kamala Harris tem uma chance única de aprofundar compromissos mais avançados e fazer a diferença. Uma vez eleita, ela talvez possa dizer que será a primeira mulher na presidência dos Estados Unidos, mas não a última, evocando simbolicamente o discurso de 2020. Mas sair do muro em que permaneceu durante a gestão Biden será o melhor começo. A possível candidata democrata à Casa Branca precisa mostrar a que veio.