Hisham Alqam. Foto: Murilo Nascimento

Era manhã de domingo, 19 de outubro. Poucas horas antes, o noticiário mostrava o que seria o primeiro ataque de Israel a Gaza, com 26 palestinos mortos, após o cessar-fogo estabelecido nove dias antes. Ainda que a cautela indique que não dá para confiar em Benjamin Netanyahu e Donald Trump — sobretudo em processos de pacificação —, o fato é que pela primeira vez aquela trégua era como um pequeno alento diante do genocídio e do sofrimento palestino.

Para Hisham Alqam, dirigente da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) — organização de orientação marxista-leninista criada em 1967 — aquela paz tênue parecia uma promessa insustentável que só o tempo dirá se resistiu.

Convidado a participar do 16º Congresso do PCdoB, em Brasília, Alqam conversou com o Portal Vermelho. Durante a conversa, ele relatou que mesmo depois do cessar-fogo, houve outros ataques por parte de Israel, de menor dimensão e mais pontuais, que não tiveram repercussão, situação que deixa o cenário ainda mais incerto.

Também falou sobre a gravidade da destruição em Gaza e sobre os planos mirabolantes da extrema direita para extirpar os palestinos e lucrar com os recursos naturais que a região pode oferecer. Mas, também destacou a fortaleza da resistência do povo palestino, mesmo diante das mais desumanas privações e perdas.

“Temos certeza de que esse cessar-fogo não foi porque Israel realmente quisesse fazê-lo para acabar o conflito. Para nós, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou à conclusão de que Israel, ao longo de dois anos, apesar de todo o apoio que lhe deu de todas as formas — militar, financeira e política —, não conseguiu atingir os objetivos”, destacou.

Ele acrescentou que, por interesses geopolíticos e econômicos, se os ataques não tivessem se dado como uma resposta à ação do Hamas em 7 de outubro de 2023, “Netanyahu, Israel e os Estados Unidos buscariam outras razões para iniciar esta guerra. Para eles, tinha que acontecer de uma maneira ou de outra”.

Ao mesmo tempo, salienta que ser palestino é mais do que a indicação do local onde se nasce: “ser palestino é, também, uma entidade, uma forma de luta, que mostra de que lado da história uma pessoa está”.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

As reais razões dos ataques de Israel
“Temos certeza de que esse cessar-fogo não foi porque Israel realmente quisesse fazê-lo para acabar o conflito. Para nós, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou à conclusão de que Israel, ao longo de dois anos, apesar de todo o apoio que lhe deu de todas as formas — militar, financeira e política —, não conseguiu atingir os objetivos.

Em 7 outubro de 2023, quando começou seu ataque a Gaza, Israel tinha alguns objetivos claros: acabar com a resistência palestina; destruir completamente Gaza e expulsar o povo que vive lá. Isso porque, há muito tempo, Israel tem um plano para Gaza: abrir um canal do Mar Vermelho para o Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, em Gaza há muito gás natural a ser explorado, ou seja, há questões econômicas importantes envolvidas.

Temos certeza de que, se a reação não tivesse começado em 7 de outubro, Netanyahu, Israel e os Estados Unidos buscariam outras razões para iniciar esta guerra. Para eles, tinha que acontecer de uma maneira ou de outra”.

Objetivos não alcançados
“Agora, como Israel não conseguiu atingir nenhum de seus objetivos, o presidente Trump apresentou esse plano, com cerca de 20 pontos. Estamos no primeiro desses pontos, mas Israel não parou seus ataques. Todos os dias, há quatro, cinco, seis. E agora este (de domingo), que teve maior repercussão.

Esse primeiro momento do acordo teve início quando a resistência entregou os prisioneiros vivos a Israel, para que Israel abrisse a fronteira de Gaza, a partir de Rafa, para que a ajuda humanitária chegasse e os feridos pudessem receber tratamento. Mas isso não aconteceu. O acordo era que 4,2 mil caminhões deveriam entrar todas as semanas. E até agora, o que está chegando são cerca de 70 por dia, o que é muito insuficiente. E eles não pretendem abrir a entrada de Rafa porque a resistência ainda não cumpriu com a entrega dos israelenses mortos”.

Mundo terá grande choque
“Ao longo de dois anos de bombardeios, tudo foi destruído e boa parte de Gaza está sob o controle militar de Israel. O mundo terá um grande choque quando as mídias internacionais entrarem em Gaza e mostrarem a situação em que está: 90% das casas foram destruídas, 100% dos hospitais, 100% das escolas, as mesquitas, as ruas, a eletricidade, a estrutura de abastecimento de água. Não há como viver em Gaza. Mais de 15% da população, que é de 2 milhões, são feridos ou mártires. E ainda há milhares sob os escombros. Todos os dias, pessoas resgatam esses corpos com suas próprias mãos. Ninguém sabe onde essas milhares de pessoas estão exatamente”.

Corpos violados
“Israel também está devolvendo corpos de mártires queimados; corpos que foram abertos e tiveram seus órgãos retirados; corpos com graves sinais de tortura ou com marcas que indicam que tanques de guerra passaram por cima.

Estamos pedindo à Cruz Vermelha, aos médicos de fora, que entrem porque, como são independentes, eles precisam testemunhar e denunciar tudo isso porque trata-se de um grave crime. Como disse o presidente Lula, é um genocídio, não é uma guerra entre dois exércitos. Trata-se de um exército muito forte atacando crianças e mulheres. E as coisas vão continuar assim”.

“Riviera do Oriente Médio”
“Essa ideia de fazer uma riviera em Gaza é loucura do Trump; ele precisa de um psiquiatra. O problema dos palestinos não é ter uma riviera, é viver, é ter comida. Querem retirar dois milhões de pessoas, reconstruir Gaza e depois ‘devolvê-la’?. Não se pode jogar com a vida das pessoas dessa forma.

Nos últimos dois anos, Israel fez de tudo para a população deixar Gaza definitivamente. Propuseram colocar essas pessoas em um avião para outro lugar, com passaporte americano se quisessem, e US$ 100 mil para cada família. E ninguém saiu. As pessoas estão voltando para suas casas, mesmo elas estando destruídas. Dizem: ‘nós vamos morrer aqui, não vamos sair daqui’”.

Apoio mundial
“Apesar de tudo o que sofremos, hoje, felizmente, acredito que as pessoas em geral já conhecem a verdade e estão do nosso lado. A partir do 7 de outubro, deixamos de ser 6 milhões de palestinos; somos muitos milhões espalhados por todo o mundo. Qualquer pessoa que use a Kufiya (o tradicional lenço usado no Oriente Médio, que vem simbolizando a causa palestina), que carregue a bandeira palestina e saia pelas ruas em demonstrações de apoio, está com a gente, é um palestino”.

Ser palestino não é apenas uma ligação sanguínea ou familiar; ser palestino é uma entidade, uma forma de luta, que mostra de que lado da história uma pessoa está: se do lado dos exploradores ou dos explorados; se do lado do sionismo, do fascismo, ou do outro lado. E a maioria dos povos está com a gente, do lado certo da história”.

Governança estrangeira x governança palestina
“Para nós, agora, o mais importante é a entrega dos corpos e dos prisioneiros que estavam à frente da resistência. O segundo ponto é que estão falando em entregar as armas da resistência e estabelecer um governo regional ou internacional, sob o comando de Trump e Tony Blair — que, no Iraque, matou mais de um milhão de iraquianos e que enfrenta denúncias de corrupção em seu país.

Portanto, no ‘segundo dia’, como dizemos, a questão é quem vai controlar os assuntos locais. E isso deve estar a cargo do povo palestino. Todos os palestinos têm que trabalhar juntos, fazer um diálogo nacional. O Egito está nos ajudando para que todos os palestinos sentem-se juntos, com todas as representações palestinas, para dialogarem e decidirem sobre como Gaza vai ser no futuro, ou quem vai governar Gaza, ou que tipo de governo palestino vai estar lá. O nosso povo não vai parar de lutar até libertar nosso país (…). O que Trump quer é regressar ao colonialismo. Ninguém no mundo aceita que esse sistema retorne”.

Perdas humanas
“É muito difícil saber o número de mortes de membros da FPLP. Temos muitos, não apenas lutadores, mas líderes também. E todos os dias descobrimos algo novo porque temos uma divisão de Gaza por brigadas e cada cidade tem a sua maneira de se organizar e se defender porque Israel não permite comunicação e reuniões normais. Então, todos os dias sabemos que uma determinada brigada teve perdas.

Um companheiro nosso, estudante em Cuba, perdeu 150 pessoas de sua família. Há famílias inteiras que foram destruídas. Esse grande número de mortes de uma mesma família acontece porque o modo de vida dos árabes não é como aqui no Brasil. Lá, e especialmente em Gaza, as famílias são grandes, numerosas. Uma pessoa tem uma moradia, se casa, tem filhos, os filhos vão se casando e ganhando um quarto…e assim vai. Há comunidades de uma mesma família com dezenas de pessoas morando num mesmo prédio.

Então, quando Israel destrói uma edificação, acaba muitas vezes com uma família inteira. Há casos de irmãos que moram em pontos diferentes de Gaza porque a mãe se viu obrigada a mandar cada um para um local diferente para garantir que, no caso de um ataque, ao menos um fique vivo. Você pode imaginar o que é um ser humano ter de raciocinar dessa forma? Uma mãe ter de fazer esse tipo de escolha?”.

O futuro da FPLP
“Eu suponho que a FPLP continuará na luta armada em Gaza e na Cisjordânia; temos membros também em Jerusalém e no Líbano. Costumávamos ter também na Síria. Temos os hospitais e associações de ajuda. Por exemplo, ao longo desses dois anos, enviamos muito dinheiro de fora para Gaza e os companheiros usavam lá, fazendo cozinhas solidárias, para distribuir comida todos os dias onde estão as maiores concentrações de refugiados. Temos que apoiar a população para que ela possa resistir também, este é uma das nossas principais tarefas neste momento”.