Há uma sequência de Malcolm X (1992), o filmaço de Spike Lee, que mostra a natureza ideológica das palavras e das representações. A cena é ambientada no pátio da prisão norte-americana de Charleston. Baines (Albert Hall) tenta atrair Malcolm (Denzel Washington) para a Nação do Islã. Mas, antes do convite, há uma série de perorações sobre a relação entre brancos e negros.

“Você aceitou tudo o que o homem branco lhe disse. Ele disse que você era um pagão negro – e você acreditou nele”, afirma Baines. “Ele disse para você idolatrar um Jesus loiro, de olhos azuis, de pele branca – e você acreditou. Ele disse que o preto era uma maldição – e você acreditou. Você já procurou a palavra ‘preto’ no dicionário?”.

A dupla se dirige à biblioteca da cadeia, onde Baines abre um dicionário e lê diversas definições de “negro”: “destituído de luz”; “desprovido de cor”; “envolto na escuridão – logo, muito sombrio e obscuro, como em ‘futuro negro’” (…); “coberto de sujeita”; “imundo”; “lúgubre”; “hostil”; “proibido, como ‘um dia negro’”; “insensato ou extremamente perverso, como em ‘magia negra’”; “indica desgraça, desonra ou culpa”.

Baines empurra o dicionário até Malcolm e pede para que ele leia os diversos significados da palavra “branco”: “a cor da neve alva”; “o reflexo de todos os raios do espectro”; “o oposto de preto”; “sem manchas ou defeitos”; “inocente”; “puro” (…); “sem intenções malignas”; “inofensivo”; “honesto”; “negociação justa”; “honorável”.

A provocação dá certo, a ponto de Malcolm decidir ler e copiar todo o dicionário, de verbete em verbete. É o estopim para a mudança que transformará um “vigarista de Massachusetts” num dos líderes negros mais influentes do século 20.

Não sei se a jovem secundarista Franciele de Souza Meira, de 17 anos, já assistiu a Malcolm X. Moradora de Extrema (MG), essa estudante de ensino médio do Instituto Federal de São Paulo, matriculada no campus de Bragança Paulista (SP), foi premiada por uma pesquisa de iniciação científica que lembra a viagem de Malcolm pelo universo das palavras.

Para mostrar o “viés racista” da língua portuguesa, Franciele selecionou 17 dicionários, lançados em períodos distintos. Em cada um deles, buscou a definição de “preto” e “negro”, fazendo uma análise comparativa do discurso. Porém, das edições antigas (como o Rafael Bluteau, de 1712) até os contemporâneos (Aurélio e Houaiss), não houve adaptações significativas.

As visões racistas ou discriminatórias – que tratam o negro como “escravo”, “indivíduo sem alma” ou “indivíduo comercializável” – são invariavelmente predominantes. Apenas três dicionários – o da Academia Brasileira de Letras (1976), o de Biderman (1992) e o de Bechara (2011) – não associam “negro” e “preto” a padrões pejorativos.

“As definições encontradas em dicionários mais antigos eram esperadas de certa forma, pois esses dicionários foram publicados quando circulava, à época, um discurso pró-escravidão”, comenta Franciele. “Em relação aos dicionários mais recentes, realmente fiquei surpresa por ver que havia continuidade desse discurso, relacionando os indivíduos negros ao período escravocrata.”

Sob orientação do professor Rafael Prearo Lima, o estudo foi batizado de “Registro de ‘Preto’ e ‘Negro’ em Dicionários de Língua Portuguesa”. Em outubro de 2023, conquistou o primeiro lugar na Bragantec (Feira de Ciência e Tecnologia de Bragança Paulista), onde concorreu na categoria Ciências Humanas e Linguagens.

Cinco meses depois, em março deste ano, foi medalha de ouro na maior feira de iniciação científica da América Latina, a Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia). Franciele superou outros 43 projetos finalistas da categoria “Ciências Humanas” e recebeu a premiação em cerimônia na USP (Universidade de São Paulo).

Inicialmente, a estudante secundarista pensou em usar a literatura – e não os dicionários – para denunciar esse retrato dos negros como “inferiores, menos humanos”. Ao trocar a ficção pelo “discurso oficial”, sua pesquisa ganhou força e contundência. “As coisas que são colocadas nos dicionários representam uma ideia da sociedade. Eles mostrarão as definições que servem para aquela sociedade naquele tempo”, diz Franciele. “Não esperava que todo o discurso mostrado em durante o século 20 continuasse no século 21.”

O estudo também mostra a falta que faz a efetivação da Lei 10.639/2003, que obriga escolas de ensino fundamental e médio a incluírem no currículo conteúdos sobre a história e a cultura afro-brasileiras. Não dá para mudar conceitos enraizados onde faltam novos paradigmas. A pesquisa de Franciele dá pistas do longo caminho a percorrer.