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Partido que mais vidas perdeu para a ditadura militar, o PCdoB tem lutado, ao longo das últimas décadas e ao lado de familiares e movimentos sociais, pela memória, a verdade e a justiça em relação aos crimes cometidos pelo regime autoritário iniciado em 1964. Ao mesmo tempo, valoriza aqueles foram mortos, no campo e na cidade, por lutar pela democracia e por igualdade. Como forma de celebrar a memória desses lutadores, o partido fará uma série de homenagens durante seu 16º Congresso, que acontece de 16 a 19 de outubro, em Brasília.

Por meio de uma exposição, uma publicação e um ato especial, será celebrado o legado dos 86 militantes do PCdoB e 15 do MR8, assassinados nas cidades, na Guerrilha do Araguaia ou nos confrontos com o latifúndio. A inclusão dos mortos e desaparecidos do MR8 decorre da incorporação do Partido Pátria Livre (PPL), herdeiro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, às fileiras do o PCdoB, em 2018.

O ato de homenagem será no dia 17 de outubro, às 19h, no Centro de Convenções Ulisses Guimarães. Além dos pronunciamentos, haverá atividades culturais e a exibição de uma versão condensada do filme Doutor Araguaia, dirigido pelo cineasta Edson Cabral, que narra a vida e a morte do médico guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho. A obra proporciona uma visão da luta e da estreita ligação dos guerrilheiros com a sofrida população da região.

“Nesse momento em que enfrentamos o ressurgimento dos movimentos fascistas no Brasil e no mundo, mas que, ao mesmo tempo, crescem a resistência a eles e as denúncias dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, homenagear a esses homens e mulheres que sacrificaram a sua própria vida na luta por um Brasil soberano, democrático, mais justo e socialista, tem um enorme significado histórico”, diz o ex-deputado e historiador Raul Carrion, que também foi preso e torturado na ditadura e que hoje coordena a Comissão Nacional Memória e Justiça do PCdoB.

A isso tudo, completa Carrion, soma-se outro acontecimento histórico: “o fato de que, pela primeira vez no nosso país, militares e civis que tentaram realizar um golpe de Estado, para acabar com o Estado Democrático de Direito e mergulhar o país em um regime ditatorial, estão presos e foram condenados a décadas de prisão”.

Manter a memória viva

Contar a história como de fato ela ocorreu e manter viva a memória daqueles tempos sombrios, sobretudo para as novas gerações, é uma maneira de desmontar o discurso dos que idolatram ditadores e torturadores e fortalecer a democracia frente a investidas golpistas e autoritárias.

É neste sentido que Diva Santana — irmã e cunhada de dois militantes mortos no início dos anos 1970 durante a Guerrilha do Araguaia, Dinaelza Santana Coqueiro e Vandick Coqueiro, até hoje desaparecidos — destaca a importância de iniciativas como essa homenagem, bem como uma série de outras ações desenvolvidas ao longo das últimas décadas por familiares, movimentos sociais, partidos, universidades, parlamentares e pela Justiça.

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“Precisamos continuar dizendo que sim, há mortos e desaparecidos no Brasil e que não houve punição a quem cometeu crimes bárbaros, como tortura, assassinatos e envenenamentos. A gente precisa continuar falando e denunciando e, ao mesmo tempo, resgatando a luta desses militantes”, salienta Diva.

Ao longo das últimas décadas, ela tem sido uma das incansáveis familiares que cobram respostas do Estado brasileiro. Diva tem, ainda, atuado como conselheira da Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos (CEMDP), colegiado criado em 1995 e que tem conseguido avanços importantes em relação às vítimas dessas arbitrariedades. Ao todo, o Brasil teve ao menos 434 mortos da ditadura reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade, muitos dos quais, até hoje, não foram localizados.

Uma das conquistas mais recentes, obtida pela atuação conjunta da CEMDP e do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do governo Lula, foi a resolução emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2024, determinando que certidões de óbito dos mortos pela ditadura possam ser retificadas, de maneira a explicitar a responsabilidade da violência causada pelo Estado brasileiro nessas mortes.

Dois atos recentes, realizados em Belo Horizonte e em São Paulo, entregaram 165 dessas certidões retificadas, inclusive para comunistas mortos no Araguaia, na Chacina da Lapa e nos porões da ditadura, entre eles, Helenira Resende, os irmãos Jaime, Lúcio e Maria Lúcia Petit da Silva; Angelo Arroyo, João Batista Drummond e Carlos Danielli.

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Cabe lembrar que o Brasil nunca puniu os responsáveis pelos crimes da ditadura, nem localizou todos os seus desaparecidos, apesar de ter ao menos duas decisões históricas neste sentido. Em 2003, num ato corajoso, a juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça Federal de Brasília, determinou que o Estado brasileiro deveria buscar e entregar aos familiares os restos mortais dos comunistas mortos no Araguaia.

Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso Gomes Lund versus Brasil (Guerrilha do Araguaia), estabeleceu a responsabilidade do Estado brasileiro devido à detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre militantes do PCdoB e camponeses da região. Até hoje, no entanto, o paradeiro da maioria desses corpos é desconhecida. Somente os restos mortais de Maria Lúcia Petit e Berson Gurjão foram localizados e entregues.

Passado e presente

Mais do que lembrar e reconhecer o papel dos que tombaram, homenagens e iniciativas de memória, verdade e justiça têm, na avaliação de Raul Carrion, papel central para a construção da democracia hoje.

“A vitória de Jair Bolsonaro em 2018 e as suas articulações golpistas, em 2022 e 2023 – com apoio de expressivos setores populares, de altos mandos das Forças Armadas e das corporações policiais – expressam o ressurgimento, com força, de correntes fascistas no Brasil e mostram que a denúncia dos crimes da ditadura e o fim da impunidade para os responsáveis por esses crimes não é uma luta do passado e sim uma luta do presente, pois a conciliação com eles só alimenta o golpismo dos dias de hoje”, analisa Carrion.

Ao mesmo tempo, em resposta a essa ofensiva antidemocrática da ultradireita, ele aponta para o crescimento recente de obras e iniciativas que denunciam esses crimes. “O filme Ainda Estou Aqui – que narra a prisão, tortura, desaparecimento e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva – recebeu este ano o Oscar de melhor película estrangeira, colocando a denúncia dos crimes da ditadura em um novo patamar e levando este debate para amplos setores da sociedade”, aponta.

A obra, assim como a decisão do CNJ, soma-se a outras recentes e importantes sinalizações na luta contra os crimes da ditadura. No início deste ano, por exemplo, após pedido do ministro Flávio Dino, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para decidir que a Corte vai analisar se a aplicação da Lei da Anistia de 1979 ao crime de ocultação de cadáver no período da ditadura militar é constitucional.

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Ao analisar o desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia, Dino sustentou a tese de que o sumiço dos corpos, sem a possibilidade de sepultamento, é um crime permanente e, por isso, não pode ser alcançado pela lei, que estabeleceu um período determinado de sua validade (os crimes cometidos entre de 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979).

Em sintonia com esse cenário, o PCdoB – a força política com o maior número de mortos e desaparecidos – resolveu criar, em 2025, a sua Comissão Nacional de Memória e Justiça. “O objetivo da CNMJ é integrar melhor as inúmeras atividades que sua militância realiza neste terreno. Como uma de suas tarefas prioritárias, foi estabelecida a elaboração de uma relação dos seus mortos e desaparecidos na luta contra a ditadura e o latifúndio, para serem homenageados no nosso 16º Congresso”, lembra Carrion.

Em maio, membros da Comissão e representantes dos familiares de mortos e desaparecidos se reuniram com a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, e trataram da importância de se intensificar o trabalho de resgate e identificação dos que tombaram na Guerrilha do Araguaia. Na ocasião, foi entregue um documento com sete medidas voltadas a esse objetivo, entre as quais a abertura dos arquivos do Exército.

“Com essas homenagens, queremos manter essa luta viva e mostrar que os militantes comunistas – que não cessaram um só instante no enfrentamento à ditadura militar, nas mais difíceis circunstâncias, ao custo da prisão, torturas e a própria morte – deram uma contribuição que ficará registrada nos anais da história”, finaliza Carrion.