Os Comunistas e a Saúde: uma relação umbilical (Parte 1)
Este artigo objetiva dar contribuição na frente de luta da saúde e ao mesmo tempo colocar luz e trazer para a discussão partidária a ação estratégica de constituir a Secretaria Nacional de Saúde, como um espaço que potencialize a “combinação dos três vetores de acumulação estratégica de forças: a luta institucional, a luta de ideias e a luta social” (PCdoB, p. 35, 2025) e contribua decisivamente na “estruturação partidária integrada e atualizada” (PCdoB, p. 42, 2025).
O artigo é dividido em três textos, abordando na 1ª parte a relação histórica umbilical entre os comunistas e a saúde. Na 2ª parte, procura-se demonstrar o papel estratégico dos comunistas e da saúde na luta contra a ditadura no Brasil. Por fim, a 3ª parte apresenta ao debate a proposta de constituição da Secretaria Nacional de Saúde do PCdoB balizada no acumulo e relação histórica dos comunistas e a saúde.
A discussão entorno da saúde faz parte da reflexão teórica do marxismo-leninismo desde o seu nascedouro. Um dos pilares teóricos dos comunistas é Friedrich Engels e em uma de suas obras literárias descreve a realidade dos operários na Inglaterra no século XIX. Em “A situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, de 1845, Engels detalha as condições sub-humanas em que o proletariado era exposto em uma das regiões econômicas mais avançadas da Europa.
Engels compara um assassino que comete o seu crime com à exposição em que a sociedade capitalista inglesa mantinha a sua classe operária, apontando que na “Inglaterra a sociedade comete todos os dias e a todas as horas este assassinato social”. Avança relatando que o capital “colocou os trabalhadores numa tal situação que eles não podem nem conservar a saúde, nem viver muito tempo”, cravando que essa situação “mina pouco a pouco a existência dos operários e assim os leva ao tumulo antecipadamente”, conclui (Engels, p. 136, 1975).
Neste período histórico os proletariados eram submetidos à longas e extenuantes jornadas de trabalho, expostos à condições de trabalhos insalubres e forçados a iniciar a vida produtiva, ainda na condição de criança, situações que refletiam na baixíssima expectativa de vida da classe operária.
Karl Marx, teórico comunista, em sua obra clássica “O Capital”, de 1867, desnuda uma realidade perversa dos trabalhadores da sua época, colocando luz, também, no tema da saúde. Marx revela um relatório do Dr. Lee, funcionário da saúde pública de Manchester, que apresenta uma comparação da expectativa de vida na “classe operária” e na “classe abastada”.
Dr. Lee, aponta que “nessa cidade a duração média de vida na classe abastada é de 38 anos, ao passo que na classe operária é de apenas 17 anos”, já em Liverpool “é de 35 anos para a primeira e 15 para a segunda”, concluindo que “a classe privilegiada tem uma expectativa de vida mais de duas vezes maior do que a de seus concidadãos menos favorecidos” (Marx, p. 872, 2013).
Marx em uma de suas conclusões aponta que “o capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração” (Marx, p.432, 2013).
A Revolução Bolchevique de 1917, construída e liderada pelo teórico comunista Vladimir Lênin, descortina uma nova aurora para a classe operária, desencadeando uma nova visão e implantando, entre outros, um modelo de saúde para a população da URSS e por consequência um exemplo que marca o mundo no Século XX.
Em sua dissertação de mestrado intitulada “O surgimento do Direito Universal à Saúde na URSS”, Hélio Dias da Costa, extraí da sua pesquisa um conjunto de elementos e publica o artigo “Evidências sociais, políticas e econômicas do surgimento do direito universal à saúde na URSS” (Costa et. al, 2020).
Inicialmente o autor aponta que a “Alemanha, França ou Inglaterra, eminentes centros formadores que já há anos influenciavam a Europa com suas formas particulares de organização da saúde não proporcionaram ao mundo o que a Rússia revolucionada proporcionou” (Costa et. al, p. 13, 2020).
No artigo, Costa et. al, 2020, apresenta, entre outros autores, Henry Sigerist, médico suíço que publicou a obra intitulada “Medicina socializada na União Soviética”, em 1937, a partir dos seus estudos e vivencias neste período na URSS.
Para Sigerist, segundo Costa et. al (p. 14, 2020), “o sistema centralizado de planejamento da saúde tinha como objetivo eliminar as diferenças de interesses para unificar forças em torno do planejamento”. Costa aponta que “é nesse momento que o autor introduz o que, em sua visão, caracterizava e distinguia o sistema soviético de qualquer outra experiência no campo da saúde até então”.
Costa et. al (p. 14, 2020) caracteriza o sistema russo, a partir do estudo de Sigerist, apontando que “o serviço de saúde era gratuito e disponível a todos”, que a “prevenção ao adoecimento estava em primeiro plano sobre todas as atividades relacionadas à saúde”, que “todas as atividades de saúde eram direcionadas por organismos centralizados, as comissárias de saúde popular” e por fim, que “tudo era planejado em larga escala”.
No pós guerra, a URSS desempenhou um papel estratégico na construção e conceituação da ONU, em 1945, como um organismo internacional que assegurasse a paz mundial e reconhecesse um conjunto de direitos à humanidade.
Nessa esteira, a Carta da ONU traz seus propósitos e dialoga diretamente com um conjunto de valores expressos, principalmente pelos comunistas russos, com o intuito de “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário”, além de “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” (ONU, p. 5, 1945).
Na perspectiva da pauta social, a saúde é protagonista nesta nova ordem pós guerra, constituindo a OMS e como consequência, os seus escritórios regionais, tendo no continente americano a OPAS.
Um dos marcos históricos para a saúde em âmbito global foi a realização da Conferência de Alma-Ata ocorrida na URSS, com a participação de 134 países e 64 organismos internacionais, produzindo ao seu final a “Declaração de Alma Ata sobre Cuidados Primários”, assinada em 12 de setembro de 1978.
Percebe-se refletir no texto da Declaração um conceito mais amplo de saúde, defendido à época pelos comunistas, indicando que a saúde é um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”, avança apontando que a saúde “é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde” (OMS, I, 1978).
A Declaração apresenta o caráter participativo entendo que saúde “é direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde” (OMS, IV, 1978).
Entre outros, aponta as diretrizes da prevenção e reabilitação, indicando que os cuidados primários em saúde “têm em vista os principais problemas de saúde da comunidade, proporcionando serviços de proteção, prevenção, cura e reabilitação, conforme as necessidades”, e a utilização da “educação no tocante a problemas prevalecentes de saúde e aos métodos para sua prevenção e controle”, além da necessidade de “promoção da distribuição de alimentos e da nutrição apropriada” (OMS, VII, 1978).
A Declaração avança apontando que para o desenvolvimento da saúde é necessário a “provisão adequada de água de boa qualidade e saneamento básico, cuidados de saúde materno infantil, inclusive planejamento familiar”, além da “imunização contra as principais doenças infecciosas, prevenção e controle de doenças localmente endêmicas, tratamento apropriado de doenças e lesões comuns e fornecimento de medicamentos essenciais” (OMS, VII, 1978).
*Referências na 3ª parte.
**Mestrando em Saúde Coletiva (UnB) – Especialista em Saúde Pública (USP) – Especialista em Sistema de Saúde (Fiocruz). Atua no Ministério da Saúde. É da Comissão Nacional de Saúde do PCdoB. Da direção estadual do PCdoB de Minas Gerais e do Comitê Municipal de Betim/MG