Justiça retifica certidão de óbito do líder comunista Carlos Danielli
No dia em que foi morto nos porões da ditadura militar (1964-1985), Carlos Nicolau Danielli intensificou as provocações aos seus torturadores. Fazia mais de 70 horas que ele – um dos mais destacados dirigentes do PCdoB – estava preso, à margem da lei, no Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo.
Com extrema violência, os inquisidores tentavam forçá-lo a delatar o nome e a localização de outras lideranças comunistas, em especial do presidente do PCdoB, João Amazonas. “É disso que vocês querem saber? Pois é comigo mesmo”, respondia, de modo sarcástico. “Só que eu não vou dizer!”
Danielli morreu heroicamente em 30 de dezembro de 1972 sem entregar nenhum companheiro. Para acobertarem as circunstâncias criminosas de seu assassinato, o 2º Exército recorreu a uma prática comum na ditadura: adulterar o atestado de óbito, relatando uma suposta “morte em tiroteio”. No documento, assinado pelos legistas Isaac Abramovitc e Paulo de Queiroz Rocha, em 2 de janeiro de 1973, uma “anemia aguda traumática” era apontada como causa mortis.
A família, os amigos e os companheiros de Danielli tiveram de esperar pouco mais de 52 anos para a devida reparação. Nesta terça-feira (7), atendendo a uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a certidão de óbito do histórico dirigente comunista foi retificada.
Agora, a causa de sua morte é outra – e verdadeira: “Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática a população identificada como dissidente política do regime ditatorial instalado em 1964”. A medida do CNJ atende a uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, concluída em 2014, sob o governo Dilma Rousseff.
A farsa da ditadura não se limitava a omitir suas atrocidades. No atestado fraudulento, os militares registraram que Danielli era “terrorista”, e não operário ou jornalista – suas reais ocupações. A nova certidão excluiu a acusação infundada do regime.
O caso Drummond
A exemplo de Danielli, cerca de cem dirigentes, militantes ou amigos do PCdoB foram oficialmente reconhecidos entre os 434 mortos e desaparecidos políticos pela ditadura. Nenhuma organização sofreu mais perdas sob o regime militar do que o PCdoB. A lista oficial de vítimas foi atualizada no relatório da Comissão da Verdade.
Só na Guerrilha do Araguaia (1972-1974), organizada na região limítrofe dos estados do Pará, Maranhão e Goiás, às margens do rio Araguaia, a repressão matou ao menos 76 pessoas ligadas ao PCdoB. Já a Chacina da Lapa, em dezembro de 1976, ceifou a vida de três membros do Comitê Central – Angelo Arroyo, João Baptista Drummond e Pedro Pomar.
Algumas famílias – como a de Drummond – já haviam conseguido retificar a certidão de óbito. Na versão da ditadura, o dirigente comunista teria morrido devido a um “traumatismo craniano encefálico”, ao ser atropelado na Avenida Nove de Julho, em São Paulo, enquanto tentava escapar de um cerco policial.
Em 16 de abril de 2012, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) atendeu ao pedido da família, representada pelo advogado Egmar José de Oliveira, e autorizou a expedição de um novo atestado. O texto, agora verídico, reconhece a “morte decorrente de torturas físicas” e indica corretamente que Drummond faleceu “no dia 16 de dezembro de 1976 nas dependências do DOI/Codi II Exército, em São Paulo”.
A luta pela revisão dos atestados falsos do regime militar ganhou força com o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Lançado no Brasil em novembro, o longa mostra o empenho da advogada Eunice Paiva para corrigir a certidão de óbito de seu marido, o ex-deputado federal Rubens Paiva, um dos mais conhecidos desaparecidos políticos do período autoritário. Rubens foi assassinado em 1971, no DOI do 1º Exército, no Rio de Janeiro. Eunice conseguiu o atestado retificado em 1996.