Quem ainda se surpreende com um Nobel da Paz para uma golpista?
A notícia vinda da velha Península Escandinava ecoou pelo mundo na manhã desta sexta-feira (10): o Comitê Norueguês do Nobel, sediado na gélida comuna de Oslo, decidiu conceder o Prêmio Nobel da Paz de 2025 à venezuelana Maria Corina Machado.
Quem era jovem nos anos 1990 talvez se lembre de outra Corina, a “babá perfeita” interpretada por Whoopi Goldberg. Carismática e inteligente, conhecedora de jazz e literatura, ela tinha o contratempo de ser negra numa sociedade abertamente racista. Mas essa Corina foi a única capaz de fazer a menina Molly (Tina Majorino) superar o trauma da morte mãe e voltar a se comunicar com a família.
Há uma outra Corina (Naian González Norvind) que estrela um filme mexicano de 2024. Esta sofre de um transtorno chamado agorafobia, que a faz ter pânico de multidões e locais fechados. Por isso, mal sai de casa. Só que seu emprego numa editora está em risco, e Corina é obrigada a enfrentar seus fantasmas. Nos dois casos – o de Hollywood e o do Méximo –, estamos diante de típicos filmes sobre tolerância e superação.
A Corina que acaba de vencer o Nobel da Paz não é um personagem de ficção. Mulher de carne e osso, a engenheira e professora venezuelana tampouco se notabilizou pela superação. Seu feito maior foi ter sobressaído no antro de golpistas que tentam derrubar o governo de Nicolás Maduro e devolver a Venezuela à condição de quintal dos Estados Unidos. Não por acaso, ela dedicou o Nobel “ao presidente Trump por seu apoio decisivo à nossa causa”.
O noticiário brasileiro repete ad nauseam que Corina foi impedida de se candidatar a presidente nas eleições de seu país em 2024. Mais do que isso, a líder da oposição venezuelana está inelegível por 15 anos, conforme decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Se depender do que saiu na grande mídia hoje, você não saberá os crimes que levaram o Judiciário a condená-la.
Embora as razões de sua pena sejam públicas e oficiais, a grande mídia no Brasil faz questão de omiti-las. A inglesa BBC, mais cuidadosa, recorda que Corina condenada “por suposto envolvimento com corrupção durante o chamado governo interino de Juan Guaidó — o político venezuelano que se declarou presidente interino da Venezuela entre 2019 e 2023”.
Em julho de 2024, um artigo de autoria de Corina foi publicano no Wall Street Journal com o título “Posso provar que Maduro foi derrotado”. Quinze meses depois, continuamos à espera das provas. Enquanto isso, a radical oposicionista já criticou o presidente Lula e declarou apoio a uma invasão militar dos Estados Unidos na Venezuela – qualquer semelhança com o deputado e quinta-coluna brasileiro Eduardo Bolsonaro não é mera coincidência.
O sueco Alfred Nobel, criador do prêmio que leva seu noma, desejou que a honraria ligada à paz fosse destinada, anualmente, a pessoas ou instituições que tenham promovido a união nacional ou internacional. O caso de Corina é inverso: ela lidera uma corrente política que tenta desestabilizar a Venezuela
Mas a honraria entregue a uma golpista não deveria ser motivo de espanto para ninguém. O mais influente acordo de paz de todos os tempos – o que levou ao fim da 2ª Guerra Mundial, com participação decisiva de Stalin e da União Soviética – jamais foi lembrado pelo Comitê do Nobel.
Nenhum país se envolveu mais em guerras e conflitos armados na história do que os Estados Unidos. Mesmo assim, Theodore Roosevelt, Woodrow Wilson, George Marshall, Henry Kissinger, Jimmy Carter, Al Gore e Barack Obama já levaram a premiação. Donald Trump tem motivos para querer integrar a lista.
Muitas vezes, o lado oprimido só foi reconhecido com a divisão do prêmio, compartilhado com seu opressor. Quando a Guerra do Vietnã estava prestes a acabar, a cúpula do Nobel só aceitou agraciar Lê Đức Thọ, líder do Partido Comunista do Vietnã, se fosse em dobradinha com Henry Kissinger, o mais célebre secretário de Estado norte-americano. Lê Đức Thọ recusou o prêmio – e fez muito bem.
O Acordo de Camp David garantiu um Nobel da Paz ao egípcio Anwar Al Sadat e ao israelense Menachem Begin. Ao fim do apartheid na África do Sul, brancos e negros foram brindados com o Nobel, repartido entre Nelson Mandela e Frederik de Klerk. No ano seguinte, Yasser Arafat, pela Palestina, teve seu prêmio fatiado com os israelenses Yitzhak Rabin e Shimon Peres.
O último líder soviético, Mikhail Gorbachev, não venceu um Nobel pela promoção da paz – mas, sim, por ter sido o “coveiro” do socialismo. Se Andrei Sakharov e Lech Wałęsa já haviam ganhado antes, não havia dúvida: o Prêmio queria ser visto como anticomunista. Revoluções? Só as pacíficas e coloridas, apoiadas pelos Estados Unidos.
Não, não há “algo de podre no Reino da Dinamarca” – ou melhor, no comitê da vizinha Noruega. Se um fantoche como Maria Corina Machado vence o Nobel da Paz, é porque a normalidade prevaleceu e o prêmio de 2025 fez jus à sua tradição hipócrita.