Quando Luiz Gama morreu, aos 52 anos, em agosto de 1882, o jornal paulista Ça Ira! registrou em seu editorial: “A trajetória desse misterioso astro se dirige a uma grande alvorada. Tranquilizemo-nos”. Era uma forma de consolar a grande massa de admiradores do líder abolicionista – caso único no Brasil de ex-escravo que se tornou um intelectual influente.

A comoção por sua perda em São Paulo era tanta que o cortejo fúnebre se deslocou do bairro do Brás até o Cemitério da Consolação. Estima-se que 4 mil pessoas acompanharam o enterro – o equivalente a 10% da população paulistana na época.

Ninguém ousa questionar que Gama foi o maior abolicionista de São Paulo – e um dos gigantes da causa no país. Foi também jornalista, poeta e – para ficarmos no consenso – um homem a serviço da Justiça. Advogado? Jurista? Pode um autodidata receber tamanho reconhecimento?

Proibido de se matricular no curso de Direito da Faculdade do Largo do São Francisco, assistia às aulas como ouvinte e frequentava a biblioteca. Tornou-se um rábula – aquele que exercia o papel de advogado sem o diploma, mas com autorização do Poder Judiciário Imperial.

Num livro de 2010, Nelson Câmara ousou chamá-lo, já no título, de “advogado dos escravos”. A saga de um negro alforriado a personalidade do Direito, de fato, era única. Mas foi apenas em novembro de 2015, 133 anos após sua morte, que Gama foi admitido, oficialmente, como membro da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Temos a oportunidade de reescrever a história”, afirmou, na ocasião, o presidente da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coelho. “Ao apóstolo negro da Abolição, pelos seus relevantes serviços prestados junto aos tribunais na libertação dos escravos, a OAB Nacional e a OAB de São Paulo concedem o título de advogado”.

Nos últimos 20 anos, o historiador Bruno Rodrigues de Lima se dedicou a estudar a atuação de Gama nos meios jurídicos. O tema o acompanha desde a formação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) até o pós-doutorado no Instituto Max Planck, na Alemanha, passando pelo doutorado na Universidade de Frankfurt.

Sua busca resultou em mais de mil textos de autoria do abolicionista, sendo mais de 80% inéditos. O material foi a base para uma coleção de 11 livros, organizada e comentada por Bruno. Desde que os primeiros títulos da série foram lançados, em 2021, o pesquisador definia Luiz Gama como “o maior jurista da história do Brasil”.

Esta é a tese que Bruno esmiúça em seu mais novo projeto, o ensaio biográfico Luiz Gama contra o Império – A Luta pelo Direito no Brasil da Escravidão. A editora Contracorrente programou 40 lançamentos – o primeiro deles foi realizado em março, no Largo do São Francisco.

Prefaciado pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida – que já foi presidente do Instituto Luiz Gama –, o livro é uma adaptação da tese de doutorado defendida por Bruno em Frankfurt. Seu foco está no empenho de Gama, “um homem preto na São Paulo branca”, para conhecer a fundo as leis, interpretá-las à luz de sua época e criar jurisprudências.

Que época é essa? Bruno traz números reveladores do Censo Demográfico de 1872. A escravidão estava presente em 100% território nacional, formado, até então, por 635 municípios e 20 províncias. Das 1.449 paróquias, 1.442 exploravam o trabalho escravo. Defender o abolicionismo era enfrentar uma cultura sacramentada – e, para isso, Gama recorreu ao direito vigente.  

“O argumento central do livro é como Luiz Gama aprendeu direito, como escreveu o direito, como praticou o direito e como inventou o direito”, declarou o autor ao Valor Econômico. Numa única ação judicial, a chamada “Questão Neto”, o desempenho brilhante de Gama garantiu a libertação de 217 escravizados.

Em carta escrita por encomenda ao escritor Lúcio de Mendonça e datada de 25 de julho de 1880, o advogado abolicionista revela que a advocacia lhe tomou cada vez mais tempo. É “para o foro e para a tribuna” que ele se dedica com exclusividade na fase final da vida. “Ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a quinhentos, tenho arrancado às garras do crime”, registra Luiz Gama.

Segundo Bruno, ao menos 750 negros escravizados conquistaram a liberdade graças ao advogado negro. Essa postura combativa e bem-sucedida rendeu a Gama a pecha de “inimigo número 1 das elites imperiais e do próprio imperador”, o que merece ser visto como um glorioso elogio à luz da história. Não deixe de ler Luiz Gama contra o Império.