A questão da religião em Marx e o Projeto de Resolução Política do 16º Congresso
Esta comunicação submetida à Tribuna de Debates do Congresso do PCdoB tem por objeto a questão da religião a partir do citado no PRP, mas com o fito propor um aprofundamento da matéria. Opera pragmaticamente como parte de fundamentação teórica de uma emenda aditiva proposta e aprovada na Conferência estadual do PCdoB-PB. O texto se estrutura a partir da análise de 4 itens do PRP, segue com a emenda proposta e sua justificativa sucinta com referência nos textos de Karl Marx.
O problema que inspira esta reflexão está longe do objetivo maniqueísta sob a forma de se colocar a favor ou contra a religião. Isto é escolha de foro íntimo e se vincula a fatores que não é o propósito central aqui discutir. Importa sim é discutir o espectro da guerra cultural em que a questão da religião se insere.
I – Dos itens no PRP
O Projeto de Resolução Política do 16º congresso traz quatro pontos que mencionam a questão religiosa, tais são: 27, 64, 87, 129, todavia importa, preliminarmente, situar a nossa leitura.
Há uma divisão metodológica geral do PRP em duas partes: a primeira identificada por uma natureza descritiva pois traz questões de fato e explicando-os, o que engloba o item I – Internacional e o item II – Situação Nacional até o parágrafo 101; a segunda, que é basicamente o item III – Partido de resistência, da luta do povo e do socialismo, tem natureza normativa (prescritiva) pois provoca o reposicionar e o revigorar do Partido e vai do 102 ao derradeiro 154.
A partir deste pressuposto, temos a localização de 3 parágrafos no cotejo da análise de conjuntura da primeira parte, os quais seguem citados com supressões para economizar espaço, grifados e comentados:
27 – Ao dominarem o fluxo informacional na sociedade, passaram também a deter enorme poder político e ideológico, intimamente associado ao Estado imperialista estadunidense. Suas ferramentas de controle e direcionamento de mensagens, explorando ressentimentos e frustrações de boa parte da população mundial – cujas expectativas materiais e espirituais de vida foram destruídas pelo neoliberalismo –, estão fomentando a fragmentação social, exacerbando manifestações de ódio por razões religiosas, raciais e de gênero, que têm servido à ascensão da direita fascista, principalmente no mundo ocidental.
Tal parágrafo se situa no debate sobre a guerra cultural operada desde o sistema digital ideológico do imperialismo. A questão da religião é citada quando menciona a operacionalização do fluxo informacional do neoliberalismo que explora e destrói as expectativas materiais e espirituais das pessoas.
No sentido de destacar a defesa da liberdade de crença e culto está o parágrafo 64 do PRP. Aqui não se pode olvidar da emenda 3218 à Constituição de 46 e que na nossa Constituição atual tem assento no artigo 5º, inciso VI: ” é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O destaque a esta emenda é porque ela foi proposta por um comunista e ateu, Jorge Amado, então Deputado Federal pelo PC-SP (1946-48).
Assim como o parágrafo 64, também o 87 toca na intolerância religiosa, seguem:
64 – O PCdoB ressalta como indispensável ao desenvolvimento do país – sob a perspectiva estratégica do socialismo –, ao reforço da união do povo brasileiro e ao progresso social, combater e superar a entrelaçada exploração e opressão […] Sublinha-se, também, no importante tema da unidade do povo, a defesa da liberdade de crença e culto, contra as perseguições e discriminações de natureza religiosa e, ao mesmo tempo, repele a manipulação da religiosidade popular, hoje ostensivamente praticada pela extrema-direita. Acrescente-se a isso a defesa do Estado laico, conquista civilizatória consagrada na Constituição.
87 – Sinteticamente, os obstáculos […] a enorme desigualdade social e regional, as tensões no seio do povo decorrentes da opressão e exploração de classe e gênero, exacerbação da misoginia, aumento do racismo, da LGBTfobia, da intolerância religiosa; a democracia, política e social, sob ameaça da extrema-direita e da oligarquia financeira.
Já na parte do PRP que nos chama à luta, a religião é trazida como encaminhamento do encontro sindical, o que reforça nossa tese de que é também um espaço para o debate. Cito:
129 – Do ponto de vista do trabalho partidário, o 9º Encontro Nacional Sindical, em 2024, […] Realizar permanentemente reuniões para escutar e unificar a orientação política. Planejar a atuação nos locais de trabalho, nos bairros e em outros espaços onde os trabalhadores tenham vida social, cultural, esportiva, religiosa e recreativa”. Apresenta, assim, a forma comunista de atuação sindical.
II – Da emenda proposta e sua fundamentação
A religião como superestrutura ideológica é um espaço de disputa que a guerra cultural manobra como veículo da extrema-direita. A intolerância religiosa, sobremaneira em relação aos cultos de matriz afro-indígenas, demanda dos comunistas a compreensão de que combinar a luta política com a luta ideológica passa também por esta questão.
Os comunistas não podem deixar de perceber a falácia ideológica que a guerra cultural impõe com o objetivo de criar cizânias para enfraquecer a organização do povo. Ou seja, não podemos ser levados pela generalização irrefletida que brada a oposição entre comunista e religião e ainda recorrem a um argumento de autoridade que é citar o próprio Marx com a famigerada menção ao ópio do povo!
O problema deste tipo de citação, muito comum nos tempos de rebaixamento teórico, é ser ao estilo: não li e não gostei!
Claro que Marx cita a religião como ópio do povo, nos seguintes termos: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é o ópio do povo.” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – 1844).
Perceba-se, todavia, que o pressuposto sobre o qual se ergue a crítica marxista à religião – qual seja, o de superestrutura que serve de móvel para o dominador (que é, frise-se, eurocêntrico) – se erige como crítica à religião monoteísta de matriz judaico-cristã, que era a forma na sociedade capitalista em que Marx vivia e sobre a qual debruça seu olhar. Então não podemos descolar o homem do seu contexto, além da exigência de sermos fiéis à filosofia materialista para não só perceber a religião como um produto das condições materiais e sociais, como para ver que ela serviu como consolo para os dominados diante das opressões, um alívio emocional e daí também para mascarar a raiz dos verdadeiros problemas sociais e impedir a transformação da realidade.
O fanatismo religioso operado pela extrema-direita conduz à intolerância religiosa contra todas demais manifestações, pois, como diz a música: “Narciso acha feio o que não é espelho”. Nada mais pertinente que perceber que o homem interpreta a dita vontade de deus e a interpreta ao seu gosto, assim Marx já dizia que “o homem faz a religião, a religião não faz o homem. A religião é, de fato, a autoconsciência e o auto sentimento do homem que ainda não encontrou a si mesmo ou já se perdeu de novo” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel).
A percepção da alienação que opera na religião como uma projeção dos sentimentos humanos, ou seja, no processo de transferência das qualidades humanas para um ser divino e alheio que resta digno de veneração promove um deslocamento do eu e da realidade concreta. Esta tese de que deus é uma projeção da essência humana, que chamamos de transferência, já estava em Ludwig Feuerbach na obra “A Essência do Cristianismo” (1841).
O debate em Marx continua com Para a Questão Judaica diferenciando emancipação política e humana ou mesmo no livro 1 d’O capital comparando o fetichismo da mercadoria com o caráter místico da religião, que ficam como sugestões para releituras com vistas a compreender todo discurso contra a religião que pretende antes desorganizar a unidade da luta contra a opressão e não salvar alma de ninguém, até porque a alma habita num corpo e esse vive neste mundo capitalista!