Ler o Brasil com os olhos do povo negro para desafiar a ordem

No coração do Brasil real, aquele marcado por desigualdades brutais e por uma maioria negra sistematicamente marginalizada, a luta antirracista não pode ser tratada como pauta secundária ou moral. Ela é uma chave estratégica para a revolução brasileira. Unir raça e classe é, portanto, uma tática comunista fundamental, não apenas para compreender o país, mas para transformá-lo radicalmente.

O racismo estrutural no Brasil não é um resquício do passado, mas sim um alicerce da dominação capitalista e do Estado burguês. O colonialismo, persiste como lógica viva que organiza o espaço, o trabalho, o acesso à terra e à cidadania. A reprodução da pobreza, da violência, do desemprego e da precarização do trabalho sobre a população negra não é casual, mas estrutural, está articulada à manutenção da ordem capitalista e racial brasileira.

Desde Palmares até as favelas, passando pelas greves urbanas do século XX e pelas mobilizações negras contemporâneas, o povo negro tem sido sujeito político central da resistência no Brasil. No entanto, o projeto nacional e democrático ainda não reconheceu essa centralidade. A esquerda, incluindo o campo comunista, por vezes tratou o racismo apenas como questão “social” derivada da exploração de classe, sem enfrentá-lo como estrutura autônoma, articulada e sustentadora do próprio sistema de exploração. O desafio histórico que temos diante de nós é romper com essa leitura parcial da realidade.

O Projeto de Resolução Política do 16º Congresso do PCdoB reconhece que vivemos um tempo de travessia. Um novo ciclo histórico está em disputa. A direita tenta se reorganizar no Brasil, mobilizando o racismo como tecnologia de dominação política e subjetiva: a militarização dos territórios negros, o genocídio da juventude periférica, a uberização do trabalho, o racismo religioso e o negacionismo da história nacional são expressões disso. É preciso afirmar, como estratégia, que a luta antirracista não se opõe à luta de classes, ela a radicaliza. Lutar contra o racismo é disputar o futuro do Brasil.

Para que nosso projeto socialista seja vitorioso, ele precisa ser profundamente enraizado na vida concreta do povo. E o povo brasileiro é, majoritariamente, negro. Portanto, não há como defender um projeto nacional de desenvolvimento, democrático e popular sem compreender o povo negro como sujeito da sua formulação, execução e direção. A revolução brasileira exige, nesse sentido, a reconstrução da nossa leitura da realidade a partir da experiência negra.

A categoria de “ordem racial” nos ajuda a compreender como o poder se organiza no Brasil. Clóvis Moura, importante marxista negro brasileiro, mostrou que o escravismo não foi superado, ele foi reconfigurado. O controle sobre os corpos negros continuou através da marginalização, da criminalização e do extermínio. O Estado, os aparelhos ideológicos, os partidos e até mesmo a esquerda não estão imunes a essa lógica. Daí a necessidade de um processo de descolonização das nossas práticas políticas.

Ler o Brasil com os olhos do povo negro significa, portanto, compreender a totalidade concreta da formação social brasileira, em que raça e classe não se separam, nem se sobrepõem, mas se articulam historicamente como partes indissociáveis da dominação capitalista. Significa reconhecer que os valores, modos de vida, estéticas, culturas e espiritualidades forjadas nos territórios negros, quilombolas, periféricos e populares são expressões vivas da luta de classes em sua forma racializada. Incorporar esses elementos ao nosso projeto de sociedade não é fetiche cultural, tampouco “identitarismo”: é aplicar o materialismo histórico à realidade concreta do Brasil, onde a superexploração da força de trabalho e o racismo estrutural caminham juntos, desde a escravização até os dias de hoje.

O papel do PCdoB, enquanto Partido Comunista com projeto de poder, é agir para a superação do racismo como parte indissociável da luta pelo socialismo. Isso implica formar quadros negros, garantir protagonismo real nas instâncias de direção, investir em ação política nos territórios negros, disputar a cultura e as redes sociais com conteúdo antirracista, combater o racismo institucional e fazer autocrítica dos limites que ainda nos atravessam como organização política forjada majoritariamente sob uma lógica eurocentrada.

A luta antirracista não deve ser tratada como mero eixo transversal ou complementar, o mesmo vale para a luta contra a opressão de gênero e a LGBTfobia. Ela é parte constitutiva da estratégia revolucionária no Brasil, na medida em que o racismo estrutura histórica e materialmente a formação da classe trabalhadora brasileira. A centralidade dessa luta não reside em “incluir” sujeitos oprimidos num projeto previamente dado, mas em reconhecer que é a partir das experiências, resistências e organizações dos setores mais explorados e violentados que se forjam as condições reais para a unidade política da classe trabalhadora em sua diversidade. Unir raça, classe, gênero e sexualidade não é um apelo à representatividade, mas uma necessidade histórica da luta por um socialismo brasileiro enraizado na vida real do nosso povo.

Ao nos comprometermos com uma leitura racializada e radical da realidade, nos colocamos em melhores condições para disputar corações e mentes, sobretudo das novas gerações que não se reconhecem em uma esquerda branca, masculina e distante de suas vivências. O desafio não é só ideológico, é organizativo. A revolução brasileira se fará com a cara do povo ou não se fará.

Neste Congresso, o PCdoB tem a oportunidade histórica de avançar na formulação e na prática. Que sejamos capazes de afirmar, sem vacilo, que o socialismo brasileiro precisa ser antirracista por necessidade histórica, por coerência teórica e por urgência política. O Brasil pede ousadia, e o povo negro já está em marcha.

*Graduando em Saúde Coletiva pela UFRGS, Presidente do PCdoB Porto Alegre e CoVereador do Mandato Coletivo.