Lula denuncia chantagem tarifária como interferência externa indevida

À frente da presidência do Brics, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promoveu, nesta segunda-feira (8), videoconferência com líderes dos países que compõem o grupo. Em sua fala, alertou para o momento de “crescente instabilidade” mundial e criticou o fato de que “a chantagem tarifária está sendo normalizada como instrumento para a conquista de mercados e para interferir em questões domésticas”. Lula ainda reforçou a proposta de criação de um Conselho de Mudança do Clima da ONU.
A conversa ocorreu dois meses após a reunião de cúpula do grupo, realizada no Rio de Janeiro, e a poucos dias da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas — evento que, aliás, foi um dos pontos da discussão.
Segundo comunicado divulgado pelo Palácio do Planalto, a reunião contou com a participação de líderes de China, Egito, Indonésia, Irã, Rússia, África do Sul, além do príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos, do chanceler da Índia e do vice-ministro das Relações Exteriores da Etiópia.
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Na ocasião, considerando o cenário mundial apontado pelo presidente brasileiro, o Brics “reafirmou seu compromisso com a preservação e o fortalecimento do multilateralismo, bem como com a reforma das instituições internacionais”, diz o comunicado.
A nota também destaca que os líderes conversaram sobre como enfrentar “os riscos associados ao recrudescimento de medidas unilaterais, inclusive no comércio internacional, e sobre como ampliar os mecanismos de solidariedade, coordenação e comércio entre os países do Brics”.
O comunicado também afirmou que o grupo segue “empenhado em contribuir ativamente para a paz, para a defesa do multilateralismo e para a construção de soluções coletivas para os desafios globais”.
Intervenção indevida
A reunião não foi transmitida, mas o discurso de Lula foi divulgado pelo Palácio do Planalto. Embora não tenha citado nominalmente Donald Trump, Lula centrou sua apresentação especialmente na crítica às intervenções em assuntos internos e taxações promovidas pelo presidente dos Estados Unidos a diversos países, especialmente o Brasil, bem como na importância do multilateralismo para fazer frente a este e outros desafios da conjuntura atual.
Lula afirmou que “medidas unilaterais transformaram em letra morta princípios basilares do livre-comércio” e que agora “assistimos ao enterro formal desses princípios”. Além disso, salientou que “nossos países se tornaram vítimas de práticas comerciais injustificadas e ilegais” e que a “chantagem tarifária está sendo normalizada como instrumento para conquista de mercados e para interferir em questões domésticas”.
Ele destacou, ainda, que a imposição de “medidas extraterritoriais ameaça nossas instituições”, acrescentando que “sanções secundárias restringem nossa liberdade de fortalecer o comércio com países amigos. Dividir para conquistar é a estratégia do unilateralismo”.
Em outro ponto importante de sua fala, Lula enfatizou que “quando o princípio da igualdade soberana dos Estados deixa de ser observado, a ingerência em assuntos internos se torna prática comum. A solução pacífica de controvérsias dá lugar a condutas belicosas. Sem amparo no direito internacional, os fracassos vivenciados no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria voltarão a se repetir”.
Governança mundial
Ao mesmo tempo, Lula voltou a criticar o atual sistema de governança mundial: “Está cada vez mais claro que a crise de governança não é uma questão conjuntural. Os pilares da ordem internacional criada em 1945 estão sendo solapados de forma acelerada e irresponsável”.
Nesse sentido, defendeu o multilateralismo, tendo o Brics como um importante instrumento de cooperação. “Possuímos inúmeras complementaridades econômicas. Juntos, representamos 40% do PIB global, 26% do comércio internacional e quase 50% da população mundial. Temos entre nós grandes exportadores e consumidores de energia”, argumentou.
Lula também tratou da guerra na Ucrânia, dizendo ser preciso “pavimentar caminhos para uma solução realista que respeite as legítimas preocupações de segurança de todas as partes”.
O presidente também condenou a decisão de Israel de assumir o controle da Faixa de Gaza e a ameaça de anexação da Cisjordânia. “É urgente colocar fim ao genocídio em curso e suspender as ações militares nos Territórios Palestinos”, completou.
Lula salientou que “reiterar o compromisso com a Solução de Dois Estados estará no centro da atuação brasileira na Conferência de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão Palestina”.
Ao mesmo tempo, Lula condenou o terrorismo, argumentando que essa prática não está associada a nenhuma religião ou nacionalidade, da mesma forma que não pode ser confundida “com os desafios de segurança pública que muitos países enfrentam”.
Recentemente, os EUA defenderam que organizações criminosas brasileiras que também atuam em outros países deveriam ser classificadas como terroristas, o que fere as leis brasileiras. “São fenômenos distintos e que não devem servir de desculpa para intervenções à margem do direito internacional”, ressaltou o presidente.
Lula também rechaçou a presença de forças armadas “da maior potência do mundo no Mar do Caribe”, o que classificou como um “fator de tensão incompatível com a vocação pacífica da região”.
Multilateralismo revigorado e soberania digital
Na segunda parte, o discurso de Lula voltou-se à 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que acontece em Nova York entre os dias 23 e 29 de setembro. Ele voltou a pontuar a necessidade de se avançar na ampliação do Conselho de Segurança da ONU, incorporando novos membros permanentes e não permanentes da América Latina, da África e da Ásia.
Além disso, destacou a questão digital como outra “lacuna central na arquitetura multilateral”. Segundo o presidente, “sem uma governança democrática, projetos de dominação centrado em poucas empresas de alguns países vão se perpetuar. Sem soberania digital, seremos vulneráveis à manipulação estrangeira”.
Crise ambiental
O presidente Lula destacou, ainda, que “o impacto do unilateralismo também é grave na esfera ambiental” e que “os países em desenvolvimento são os mais impactados pela mudança do clima”.
Ele salientou que a COP30, em Belém, será “o momento da verdade e da ciência”. E acrescentou que “além de trabalhar pela descarbonização planejada da economia global, podemos utilizar os combustíveis fósseis para financiar a transição ecológica”.
Além disso, destacou a capacidade do grupo de promover “uma industrialização verde, que gere emprego e renda em nossos países, sobretudo nos setores de alta tecnologia”.
Em nome do Brasil, Lula destacou a necessidade de uma “governança climática mais forte, capaz de exercer supervisão efetiva”, e propôs que o Brics considerem apoiar a criação de um Conselho de Mudança do Clima da ONU, “que articule diferentes atores, processos e mecanismos que hoje se encontram fragmentados”.
Ao mesmo tempo, chamou atenção para o Fundo Florestas Tropicais para Sempre, “que queremos lançar na COP30, com o objetivo de remunerar os serviços ecossistêmicos prestados ao planeta”.
Por fim, destacou que “o Sul Global tem condições de propor outro paradigm