Mulheres só começaram a ser biografadas 1.900 anos após os homens
É impossível cravar quando foi publicada a primeira biografia, embora dois livros recentes sobre o tema apontem para algumas obras. Lançados no final de 2023 pela Companhia das Letras, A Vida por Escrito, de Ruy Castro, e A Arte da Biografia, de Lira Neto, tentam – digamos assim – historicizar o gênero biográfico.
Divergentes em relação às obras inaugurais, os dois escritores indicam um ponto comum na história das biografias: a prolongada ausência de mulheres como personagens desses livros. Se a biografia nasce como um elogio aos poderosos da Antiguidade, os homens, por quase dois milênios, dominam 100% dos primeiros textos do gênero.
Encômios
Ousado, Lira Neto situa a biografia mais antiga na Pérsia, sob o reinado de Dario (522 a.C-486 a.C). Estamos falando, portanto, de mais de 2.500 anos atrás. O monarca teria escrito passagens de sua vida – uma autobiografia – nas pedras de um penhasco “íngreme e elevado” do monte Behistun. “Conquistas, guerras e revoltas internas, tudo é descrito por Dario em narrativa triunfal, autocongratulatória, recheada de intrigas e traições”, analisa Lira Neto.
Nos séculos seguintes, acrescenta Lira, surgem escritos sobre mortos célebres: “Além do tom lisonjeiro e da justificativa de propagar a ‘verdade’ aos vindouros, tais textos se inseriam na longa tradição de discursos funerários, os chamados ‘encômios’, laudatórios aos mortos”. No século 5 a.C., Xanto publica Vida de Empédocles, enquanto Cílax registra a Vida de Heráclides. “Contudo, tais obras perderam-se para sempre.”
Em contrapartida, chegaram até nós as homenagens póstumas a Evágoras do Chipre (feita por Isócrates em aproximadamente 370 a.C.) e a Agesilau de Esparta (celebrada por Xenofonte uns dez anos depois). Lira Neto pontua que, nesses casos, não se trata de “biografias propriamente ditas”, uma vez que “tais louvações omitiam eventos da vida privada do homenageado, concentrando-se em aspectos da trajetória pública”.
Grandezas e pequenezas
Assim, para Ruy Castro, é possível nomear dois biógrafos incontestavelmente pioneiros: o grego Plutarco e o romano Suetônio, que viveram décadas após a morte de Jesus Cristo, entre os século 1 e 2. “Ambos escreveram sobre os poderosos do seu tempo, dos deuses e faraós aos guerreiros e imperadores, porém de pontos de vista diferentes”, afirma.
Autor de Vidas Paralelas (cerca de 80 d.C.), Plutarco “ignorou a História e se concentrou nas grandezas e pequenezas de seus personagens”. Já Suetônio escreveu Vidas dos Dozes Césares (c. 121 d.C.) de modo mais convencional, com base nos arquivos oficiais da Roma Antiga. Contemporâneo a eles, Cornélio Nepos se notabiliza com a coletânea Excelletium Imperatorum Vitae, que, nas palavras de Lira Neto, reúne “notas biográficas a respeito de 16 personagens”.
Da Antiguidade ao início da Idade Moderna, passando pelos séculos sombrios da Idade Média, a linha do tempo da biografia tem outros marcos: As Confissões (397 ou 398), de Santo Agostinho; Vida de Carlos Magno, de Eginhardo (século 9); Vida de Dante (1361), de Boccaccio; e Le Morte d’Arthur (1485), de Thomas Mallory. Houve até um exemplar de autoria anônima acerca do militar francês Jean Le Meingre.
“Mulheres Famosas”
Em comum, como já dissemos, os primeiros biógrafos ou memorialistas só narraram trajetórias masculinas – a vida e a obra de homens públicos –, como se não houvesse expoentes femininos à altura. As mulheres tiveram de esperar cerca de 1.900 anos para se tornarem personagens de biografias. Segundo Ruy Castro, é Boccaccio que, em 1374, quebra o tabu com A Respeito de Mulheres Famosas (De Claris Mulieribus).
“Para ser exato”, esclarece Ruy, são “106 minibiografias de mulheres mitológicas ou reais”. É o caso de “Eva, Vênus, Penélope, a poeta Safo, Agripina e Popeia, estas últimas respectivamente mãe e mulher de Nero”. A crer na descrição feita em A Vida por Escrito, o livro de Boccaccio nos lembra uma enciclopédia – a primeira voltada exclusivamente às mulheres.
Passaram-se 547 anos para que a biografia de uma mulher específica pudesse ser considerado um clássico. Esta foi a proeza de Rainha Vitória, escrito por Lytton Strachey e lançado em 1921. Hoje, as boas biografias não apenas nos apresentam mulheres únicas – mas também já são de autoria de escritoras mulheres.
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Em tributo aos autores de A Arte da Biografia e A Vida por Escrito, cabe citar dois de seus melhores trabalhos: Carmen – Uma Biografia (2005), de Ruy Castro, e Maysa – Só numa Multidão de Amores (2007), de Lira Neto. Não esperem interpretações críticas sobre as obras de Maysa ou Carmen Miranda – mas, sim, um mergulho na vida dessas mulheres tão inspiradoras quanto suas respectivas obras.