Empreender para sobreviver: quando a consciência não consegue vencer a sobrevivência
Na noite da qual te falo, jantamos em Paderno e, em seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo dei Pino, vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes (abbiamo visto una quantità immensa di lucciole), que formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes (perché si amavano, perché si cercavano con amorosi voli e luci),.[i]
A luz é sempre igual a uma outra luz. Depois se modificou: de luz se tornou alvorada incerta, […] e a esperança teve uma nova luz. (P. P. Pasolini. A resistência e sua luz (1961))
Há tempos eu não vejo um vaga-lume. Aparentemente, a urbanização (ou o neoliberalismo) aniquilou esses insetos luminosos. Didi-Huberman, em “A sobrevivência dos vagalumes”, comenta sobre uma carta que o jovem Pasolini, aos dezenove anos, escreve ao seu amigo sobre a presença de vagalumes. O ano era 1941, auge do fascismo italiano, e aqueles seres luminosos se apresentavam como um lampejo de esperança. Para Pasolini, os vaga-lumes representam um modo de sentir a vida, uma alegria inocente e poderosa que surge como uma alternativa aos tempos sombrios do fascismo. Na carta, ele descreve uma noite sem lua onde ele e seus amigos viram “uma quantidade imensa de vaga-lumes” formando “pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos”, e os invejavam porque “se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes”. (Didi-Huberman, 2011. p.19)
De fato, a imagem que Pasolini testemunhou deve ter sido forte e bonita. Em 1975, Pasolini retoma essa imagem. Entretanto, a retomada é para falar sobre o seu desaparecimento e o luto que traz consigo. Para o cineasta italiano, o desaparecimento dos vaga-lumes não ocorreu na escuridão, mas na “ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores “do fascismo triunfante. (op. cit, p.26). Não pretendo me estender muito nessa alegoria. Quero mobilizá-la para aprofundar uma discussão necessária para a esquerda e o movimento de trabalhadores brasileiro. Quero dizer, pretendo debater sobre os nossos vaga-lumes: a classe operária brasileira.
O presente texto tem como pretensão aprofundar os debates expostos no ponto 5 e 11 e seguintes do projeto de resolução. Nos últimos anos levantou-se uma (falsa) polêmica no seio da esquerda sobre as chamadas “pautas identitárias”. Em geral, os críticos vocalizam uma ideia de “pós-modernidade” e “falta de centralidade da esquerda no trabalho”. Há uma preocupação em demasia para com esses movimentos e pouco espaço para a autocrítica. Se olharmos para o 1º de maio, por exemplo, e enxergar o que ele representa hoje. O que vemos? São como os vagalumes de Pasolini, onde ficamos presos ao seu passado luminoso e não conseguimos visualizar a luz que está apagando. Ou não conseguimos enxergar que a maior mobilização pelo fim da escala 6×1 não ocorreu numa mobilização sindical e, sim, nas Paradas LGBT+ realizadas em todo o país? Talvez essa, apesar de ser tão criticada por alguns, seja a nossa esperança de uma nova luz.
Aliada a incapacidade de mobilização do movimento sindical, há outro fenômeno ainda mal compreendido entre a esquerda: o empreendedorismo. Muitos se arvoram em condenar esses trabalhadores a uma “falta de consciência de classe”, de que são “explorados sem saber” ou que a ideia de “empreendedores de si mesmo” é uma falácia. Por certo, eu concordo com essas avaliações. As bigtechs exploram esses trabalhadores e os deixam à mingua. Cada vez mais há uma assimilação de uma moralidade em que só é legítimo “receber”, se você trabalhar, fulminando uma conquista histórica do movimento sindical do descanso remunerado. Essa nova formatação de trabalho é extremamente nociva ao povo. Mesmo assim, cada vez mais jovens, numa tendência, tem preferido o trabalho por conta própria do que ser CLT. E mais: conteúdos nas redes sociais acumulam-se para condenar a carteira de trabalho.
Entretanto, por que não escutá-los? Ao invés de tentar uma tutela, como alguém que é detentor do conhecimento e sabe o que é melhor para todos, por que não ouvir o que esses “empreendedores” tem a dizer? Creio que um dos motivos do afastamento da esquerda a essa massa de gente que tenta ganhar a vida é que rechaçamos, a priori, o modo de vida que eles escolheram. Uma parcela da esquerda condena o empreendedorismo por si. Mas, veja, quem é quer ter um patrão? No final das contas, indiretamente, aos olhos desses indivíduos, nós defendemos o patrão enquanto a direita os defende dele (ou ajuda a camuflar ideologicamente.) Nessa clivagem da desigualdade brasileira, que separa os pobres da “classe média”, no qual os primeiros tendem a optar pelo empreendedorismo, enquanto os segundos, por gozarem de melhores condições na educação, optam pelo concurso público. Ao fim e ao cabo, todos estão fugindo do patrão. Só que para os empobrecidos, a esquerda diz que é “falta de consciência de classe”. Mas é difícil ter consciência quando é preciso lutar pela sobrevivência.
Diante da nova configuração das relações de trabalho, que é caracterizada principalmente pelo esgotamento do padrão de assalariamento, a esquerda quer que o povo tenha patrão enquanto é o neoliberalismo que está cumprindo a promessa de extingui-lo (ao menos de forma aparente). Essa é a forma como muitos assimilam o debate em torno do assalariamento. Alguns argumentarão – de forma legítima – que “precisamos disputar a consciência desses trabalhadores” e eu concordo. Só que esses trabalhadores não irar seguir os vagalumes, como quem busca-os como uma luz em meio à escuridão, porque o neoliberalismo jogou a claridade dos seus “ferozes projetores”. Avalio que o principal problema do assalariamento hoje são os baixos salários. Contudo, os trabalhadores preferem “rodar de uber” e trazer o sustento extra para suas casas ao invés de mobilizar uma greve. Isso porque o neoliberalismo, por meio do seu individualismo exacerbado, eliminou o laço de solidariedade de classe, em que esses indivíduos não se reconhecem mais.
Um dia, ao conversar com um motorista de Uber sobre mobilização, ele me respondeu que “meu sindicato é meu WhatsApp”. Ou seja, ele queria dizer que quando precisava de uma ajuda, recorria a grupos de conversas que o auxiliava. Se, porventura, não podia “rodar” num dia por estar doente, essas pessoas cotizavam com pix para pagar a sua diária. Isso me fez lembrar do surgimento dos sindicatos no século XIX. Em suma, os sindicatos surgiram com a função de enterrar dignamente os seus mortos. Esse laço de solidariedade é que precisamos resgatar e não os julgar como “sem consciência de classe”. Pois, como nesse breve exemplo, essa consciência de acudir o seu “igual” ainda existe, mas transmutada em novas formatações que ainda não conseguimos alcançar.
Eu acredito que a esquerda perdeu a capacidade de emocionar. Atuamos a partir de uma lógica/racionalidade instrumental, na qual quem não é convencido é considerado um burro. Deixamos os sentimentos de lado. Veja, o PIB vai bem, taxas de emprego vão bem, indicadores e estatísticas ótimos. Mas os números não comovem ninguém. Por outro lado, a direita segue numa mobilização em que emociona e comove, seja pela religião, seja pela ideia neoliberal do empreendedorismo. Ela consegue mexer com o sonho das pessoas. Perdemos a capacidade de gerar reconhecimento, de projetar a utopia. Penso que estamos caindo numa armadilha de ficar preocupados em tutelar a vida alheia. Citamos Paulo Freire, mas ninguém tem mais paciência para ensinar. Se o outro erra já é sumariamente condenado/cancelado. Assim, abrimos mão de criar uma nova maioria. Num sentido lógico, com os argumentos dos números, era para estar tudo bem. Mas há o sentimento. Ainda há o sentimento.
Didi-Huberman, Georges. Sobrevivência dos vaga-Ium es / Georges Didi-Huberman ; Vera C asa Nova; Márcia Arbex, tradução ; Consuelo Salomé, revisão. Belo Horizonte : Editora UFMG , 2011.
*Advogado. Membro do Comitê Estadual do Rio de Janeiro.