Segurança Pública: uma resposta à esquerda
Uma recente pesquisa de opinião indicou que quase 30% dos brasileiros consideram a violência como sendo o maior problema nacional. Ela assusta num país com enorme número de feminicídios[2], que é campeão mundial de assassinatos de pessoas trans[3] e que registra uma taxa de mortes violentas intencionais (MVI) de 21,2 casos por 100.000 habitantes[4]. Esse índice é o dobro do tolerável segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)[5].
Assaltos, estupros, furtos, assassinatos e agressões coexistem com o crescimento do crime organizado. No Rio de Janeiro, facções e milícias disputam entre si e com o Estado o controle da cidade. Hoje, 60% do município está sob o governo de fato do crime organizado. Isso significa 25% dos bairros da capital, cobrindo 687km² e 2.659.597 habitantes, o equivalente a 41% da população carioca. Situação similar já se reflete em todas as regiões do Brasil.
Para enfrentar esses grupos, o poder público insiste há quatro décadas na fórmula repressiva, comprando armamentos e veículos de combate para polícias militares e civis, construindo presídios e engajando as Forças Armadas em missões policiais. Alguns dos resultados destas diretrizes são:
1) O crescimento exponencial do poderio bélico e da potência das armas entre criminosos e, em seguida, entre as forças policiais. De um lado, veículos blindados de transporte de tropas (os “caveirões”), helicópteros com atiradores de elite e carros da PM com canos de fuzis para fora da janela. De outro, barricadas nas entradas de comunidades, bandos de milicianos armados e ‘soldados do tráfico’ exibindo armamento pesado. No Rio, o primeiro fuzil foi apreendido em 1989. Em 2024, o número subiu para 732 apreensões.
2) O Brasil conta hoje com a terceira maior população carcerária do mundo, com 850.000 presos, sendo 70% deles jovens negros e pobres. O encarceramento em massa fortalece o modelo brasileiro de crime organizado, pois as facções nascem e se desenvolvem nas cadeias e penitenciárias.
3) o aumento da letalidade dos confrontos entre grupos criminosos e forças de segurança. Hoje, as cidades mais letais do Brasil são as pequenas Santana, no Amapá, e Camaçari, na Bahia, respectivamente com 92,9 e 90,6 MVI/100.000[6].
Ano após ano, a situação se agrava e quem mais sofre é povo trabalhador, em sua maioria empobrecida, negra, subempregada e com baixa escolaridade. Ao mesmo tempo, policiais são expostos a níveis de conflitividade encontrados apenas em guerras civis e guerras entre Estados. No estado de São Paulo — com a quinta PM mais letal do país, com 504 mortos em 2024[7] —, o número de afastamentos por questões de saúde mental tem crescido exponencialmente. Apenas em 2024, foram 653 licenças psiquiátricas entre policiais militares paulistas[8].
É crucial que os policiais sejam responsabilizados individualmente por condutas violentas. No entanto, o sofrimento físico e psíquico nas corporações é real, pois eles são o braço armado usado pelas elites e classes médias para manter uma sociedade capitalista brutalmente desigual.
No Brasil, a esquerda tem negligenciado a questão da criminalidade. É preciso dar uma resposta à demanda dos mais pobres e vulneráveis da nossa sociedade. Do contrário, apenas o campo das direitas seguirá oferecendo soluções que, mesmo falsas e falhas, serão as únicas promessas que a população receberá.
Bons resultados, no entanto, não serão alcançados copiando as políticas da direita. Elas não devem ser imitadas porque vão contra princípios inegociáveis da esquerda — como os direitos humanos e a valorização da vida —, e porque simplesmente não funcionam para melhorar a vida do povo brasileiro.
É urgente desmontar o discurso de que a “esquerda defende bandido”, mostrando que a nossa luta é pela dignidade humana; e, para que haja vida digna é preciso conter e reverter ao máximo as situações de violência cotidiana a que estão submetidos os mais vulneráveis.
Para tanto, será necessário reunir militantes, intelectuais, políticos e lideranças populares do nosso campo que tenham experiência prática e formulações teóricas sobre segurança pública com o objetivo de desenhar propostas claras, diretas e ousadas para a área. Trata-se de um esforço de salvação nacional para enfrentar a violência e a criminalidade formando uma frente ampla progressista, pragmática e ética, para derrotar a direita no campo da segurança pública.
Teremos que enfrentar questões como (1) a reversão do super-encarceramento — pois é ele que fornece os ‘soldados’ para o crime organizado —, (2) a regulamentação responsável das drogas — pois a proibição penaliza os pobres e desresponsabiliza os ricos —, (3) o preparo, remuneração e doutrina das polícias — pois a sua exposição a doutrinamento militarista, baixos salários e desamparo psicológico apenas alimenta o ciclo de violência e letalidade —, (4) a revisão do papel das Forças Armadas — pois a sua transformação em polícia é deletéria a elas mesmas, à democracia e à soberania nacional —, (5) a ocupação de territórios pelo crime organizado — pois as facções e milícias são forças autoritárias que oprimem o povo trabalhador —, (6) o tráfico de armas — pois a maioria do armamento utilizado pelo crime organizado vem ilegalmente de fora do país ou é desviada com a conivência de agentes públicos —, (7) a regulamentação das grandes transações financeiras — pois a lavagem de dinheiro é operada por financistas nacionais e estrangeiros —, (8) a formação de um sistema único de segurança pública nacional que padronize dados, acesso a prontuários, consulta a investigações e estatísticas — pois é impossível enfrentar o ágil crime organizado com burocracias mal equipadas, mal informadas e incomunicáveis —, (9) o investimento em inteligência policial — pois é inviável combater redes nacionais e internacionais com imensos recursos sem investigação policial qualificada e bem remunerada, — (10) o desarmamento, reabilitação e reintegração de jovens dos escalões mais baixos do crime organizado — pois é ilusão pensar que aqueles/as que nem trabalham e nem estudam (os “jovens nem-nem”[9]) milagrosamente ‘saiam do crime’.
Para encarar essa enorme tarefa, temos que unir forças e, com propósito firme, abrir diálogo com a população brasileira, mostrando que a esquerda tem propostas concretas. O PCdoB, pelo seu histórico de compromisso com os grandes projetos nacionais e pela recusa a sectarismos, é a força política que está em condições de liderar esse processo. O Partido pode ser a vanguarda desta grande campanha pela segurança com dignidade, pela vida contra a violência.
[1] Thiago Rodrigues é cientista político, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). É membro da Secretaria de Formação e Propaganda do PCdoB/RJ.
[2] Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/feminicidio-quatro-mulheres-sao-assassinadas-por-dia-no-brasil/
[3] Ver Bruna Benevides. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024 / Bruna G. Benevides. ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) – Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2025. Disponível https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2025/01/dossie-antra-2025.pdf
[4] Ver: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/05/atlas-da-violencia-2025-registra-menor-taxa-de-homicidios-no-brasil-em-11-anos
[5] Ver: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/05/atlas-da-violencia-2025-registra-menor-taxa-de-homicidios-no-brasil-em-11-anos
[6][6] Ver: https://www.cartacapital.com.br/justica/as-10-cidades-mais-violentas-do-brasil-segundo-o-anuario-de-seguranca-publica/
[7] Ver: https://www.estadao.com.br/web-stories/brasil/os-10-estados-com-as-policias-mais-letais-do-brasil-nprm/?srsltid=AfmBOoqVQzghg9mF49imX2anqiCpLP2rV4qz-18KXOVtCIcS-Ur7ieDG
[8] Ver: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2025/06/25/pm-sp-registra-35-mil-afastamentos-psiquiatricos-desde-2020-em-meio-a-boom-de-saidas-voluntarias.ghtml
[9] Ver: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html