O erro de Pachukanis
(e as consequências das inconsequências (teóricas e práticas) pelas quais todo direito seria direito burguês)
As ideias são consequências das realidades do mundo.
Compete à reflexão apropriar-se de suas determinações
e dar-lhes expressão.[2]
Comunistas, especialmente os que atuam em áreas jurídicas (ensino, pesquisa e na práxis do direito) são – não poucas vezes – chamados a se posicionarem sobre a atitude dos marxistas acerca da forma jurídica e do caráter de classe do direito. Ambos os problemas envolvem questões teóricas de fundo, no que concerne a extinção da forma jurídica e pela opinião de que todo direito é burguês.
Ainda que Pachukanis não tenha afirmado expressamente na sua obra principal, que todo direito é direito burguês, pode se sustentar com segurança que o conjunto da sua teorização defende que direito é uma forma burguesa de domínio, pelo que nele se conclui que não apenas seria expressão desse poder, mas que todo direito seria direito burguês.
Há que se notar que mesmo o direito moderno tendo sido estruturado por uma classe em ascensão – a burguesia, o seu discurso acentua o fato de ter sido erigido em torno da ideologia da neutralidade e imparcialidade de seus agentes.
Isso foi possível ser feito ao se ocultar que a imparcialidade é só a forma, nunca o conteúdo do direito, sendo de evidenciar que mesmo no âmbito da justiça, se o processo fosse nada mais que forma carente de conteúdo as formalidades careceriam de valor, na medida em que toda é forma é sempre forma de um conteúdo[3].
Mas essa afirmação do jovem Marx não autoriza a conclusão de Pachukanis, cujo prestígio no Brasil deriva, quase que exclusivamente, da difusão que deu ao conjunto de sua obra, o sociólogo e jurista marxista, meu amigo Márcio Bilharinho Naves, a quem – e seguindo uma boa tradição filosófica – peço licença para discordar quanto a essa inferência específica.
E o faço ressaltando de logo meu respeito a esse magnífico estudioso para me distinguir de epígonos arrogantes que gravitam em torno do mesmo.
Acerca desse desdobramento lógico da teorização pachukaniana, Márcio Naves vai direto ao cerne da questão: “o direito está irremediavelmente vinculado ao processo de trocas de mercadorias, portanto, e também irremediavelmente, vinculado à sociedade burguesa”[4].
Lon Fuller já apontara anteriormente no mesmo sentido, quando chama atenção de seu leitor que “Pashukanis foi claro e enfático ao afirmar que, enquanto houver troca você terá direito e enquanto houver direito ele será direito burguês”.E completa: “não adianta fingir que a lei socialista é algo de natureza superior ou diferente da lei capitalista. Pensar o contrário é se iludir.[5]
Com isso, a nossa objeção que denominamos “erro de Pachukanis” é se querer extrair do fato da existência de desigualdades e da necessidade de tratá-las, a conclusão pela qual todo direito, em sendo direito da desigualdade, seria direito burguês como se o caráter do direito não fosse expressão das classes que detêm o poder político sobre o Estado.
Tal erro de apreciação sobre o direito, o Estado e as classes no poder, além de ser teórica, política e ideologicamente erradas, eis que a conclusão pachukaniana (implícita ou explicita) pela qual todo direito é direito burguês, desarma a luta do movimento social contra uma maquinaria (o Estado burguês) e de um de seus instrumentos na luta de classes (o Direito burguês).
Já, e em contrapartida, a afirmação (que chegou a cultura ocidental, e ao direito, pela mão de Aristóteles) recepcionada por Marx, na “Crítica ao Programa de Götha”, pela qual “todo direito é direito de desigualdade”, não apenas perpassa toda essa mencionada cultura, desde a ‘Etica a Nicômaco”, como dá suporte a ideia de justiça como equidade e, portanto, trata das desigualdades que aprofundam injustiças e não daquelas que as atenua na equidade.
Assim, uma coisa é a conclusão (errada) de que “todo direito é direito burguês”, algo diverso de perceber que todo direito é direito de desigualdade.
O erro – teórico, político, ideológico, estratégico, tático e o mais que se queira afirmar – já antevisto ao início do presente artigo, segundo o qual e pelo qual todo direito (destaque-se também o advérbio dado seu caráter induvidoso: se é todo o direito, trata-se de gênero, pouco importando a sua especificação social, se duma sociedade feudal, burguesa, socialista etc.), por que direito, logo, seria “burguês”, afirmação esta cujo âmago, aparentemente radical, serve única e exclusivamente para desarmar política e ideologicamente a classe operária e povo na luta pela implantação do poder democrático, nacional-popular e que construa as condições de avançar para uma sociabilidade socialista.
Ocorre que, até a extinção do Estado e da forma jurídica, o que se terá é o uso (tático) de um direito e de medidas que correspondam ao estágio e ao momento concreto da luta de classes, podendo – inclusive numa sociedade socialista em sua primeira fase – ser dotado de aspectos herdados, ainda, de sua natureza burguesa (mesmo que residual eis que provisória, como no caso da NEP, na Rússia pós-revolução de outubro de 1917).
Assim, cabe refletir acerca do erro em se considerar a forma jurídica como categoria intrinsecamente burguesa, ao invés de intrinsecamente classista – burguesa ou proletária – a depender da natureza da classe e do Estado que o produz.
A argumentação pela qual todo direito é direito burguês, por regular o intercâmbio de equivalentes, não leva em conta que conduz a aporia de saber o que regia todas as demais sociedades de classes anteriores ao capitalismo.
Se a forma jurídica é burguesa em si que nome deve-se dar a regulação estatal produzida no feudalismo, na idade média? Se não era direito, seria o que?
Ora, como, ontologicamente, o ser do direito é poder e dominação ou coerção revestida de consentimento, sua síntese/superação só pode significar a extinção futura da forma jurídica enquanto modo de regulação.
Lembra o próprio Marx que o trabalho, para servir de medida, tem que ser determinado quanto à duração ou intensidade, senão deixa de ser medida. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual e não reconhece nenhuma distinção de classe, pois aqui cada indivíduo não é mais que um operário como os demais; mas reconhece – como outros tantos privilégios naturais – as desiguais aptidões dos indivíduos e a desigual capacidade de rendimento. No fundo é, portanto, como todo direito, direito de desigualdade.[6]
Não importa que na valoração e na explicitação dos valores como correção, justiça, igualdade, fraternidade, senso coletivo, a sociabilidade do capital relegue-os, subestime-os ou mesmo positive-os na direção de sua negação. É apenas um sintoma que a disputa de significação na sociedade não pode ser tratada como fenômeno só no campo das ideias.
O direito, portanto, nada mais é (se considerado ceticamente e em sua ‘miséria filosófica’) do que “o reconhecimento oficial do fato”[7] e sendo assim, nada mais faz do que estabelecer sua universalidade no caráter formal da lei, a fim de que ela imponha os limites da particularidade supramencionada (o caso concreto) para o indivíduo tomado enquanto singularidade empírica.
Juristas burgueses podem difundir certas ideias por ilusões referenciais ou por interesses políticos-ideológicos, juristas marxistas sequer têm essa desculpa vez que, como diria Espinosa “ignorância não é argumento”.
*[1] Vice-Presidente PCdoB/PB. Professor Titular do Curso de Direito na UFPB. Advogado licenciado em razão do regime de trabalho (Dedicação Exclusiva). Graduado, Mestre e Doutor em Direito pela UFPE. Doutor em Filosofia, leciona na Graduação e Pós-Graduação em Direito (ME/DO) e no Doutorado em Filosofia. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Marxismo, teoria e filosofia do direito”
[2] VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e existência. Rio de Janeiro; paz e Terra, 1969, p. 64. Só recentemente a monumental obra desse filósofo, catedrático na Universidade Nacional (hoje UFRJ) e que liderou o Departamento o Departamento de Filosofia do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros até o seu fechamento pós-golpe de 64, foi reeditada, o que aconteceu de alguns anos para cá, com a publicação pela Editora Contraponto de ‘Ciência e existência’, ‘O conceito de tecnologia’, ‘Sociologia dos países desenvolvidos’, ‘Consciência e realidade nacional’, para citar as mais relevantes.
[3] MARX, Carlos. “La ley sobre los robos de leña”. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura Econômica, 1987, p. 281-282.
[4] NAVES, Márcio B. A questão do direito em Marx. São Pulo: Outras Expressões, 2014, p. 28. O destaque é meu.
[5] FULLER, Lon. Pashukanis and Vyshinsky: a study in the development of marxian legal theory. In: Michigan Law Review, vol. 47, issue 8, 1949, p.1163.
[6] MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha. In: Marx e Engels – Obras Escolhidas, v. 3. Lisboa: Avante, 2010, p. 86-87.
[7] MARX, Karl. Miséria da filosofia, op. cit.