Por definição, soberania, tal como estabelecido por Jean Bodin em 1576 e consolidada no Tratado de Westfália de 1648, significa como o poder absoluto, perpétuo e indivisível de um Estado-Nação sobre seu território e população, livre de qualquer interferência externa. Era um princípio de organização e de não-intervenção. A globalização, a revolução digital e os desafios transnacionais, como mudanças climáticas e cibersegurança, deturparam essa noção absoluta. A soberania do século XXI é menos sobre um muro intransponível e mais sobre capacidade e autonomia.

Como forma de apresentar o debate podemos estabelecer algumas dimensões: A Política, como a clássica autodeterminação, mas agora desafiada por campanhas de desinformação internacional e pressões diplomáticas; A Econômica, como a autoridade para definir políticas industriais, fiscais e monetárias, com frequência limitada pela volatilidade dos fluxos de capital global e por cláusulas de acordos comerciais; A Tecnológica, que envolve o controle sobre dados dos cidadãos (soberania de dados), a segurança de infraestruturas críticas (como redes 5G e sistemas financeiros) e a capacidade de inovar sem dependência estratégica de potências estrangeiras; A Alimentar e Energética, que é a garantia de produzir os alimentos necessários à população e de gerir as fontes de energia que movem o país, assegurando resiliência contra crises globais; A Socioambiental, como o direito e a capacidade de gerir os recursos naturais, notadamente biomas como a Amazônia, de forma autônoma, mas com a crescente pressão e responsabilidade perante a comunidade internacional.

O paradoxo moderno da soberania está em compartilhar para fortalecer. Ao aderir a tratados e organismos multilaterais, o Estado “cede” uma fração de sua autonomia em troca de influência, cooperação e segurança coletiva, sendo em última análise, o reforço a sua posição soberana no longo prazo. O desafio é fazer isso sem perder a voz própria.

Ameaças e Desafios à Soberania Brasileira Atual

A soberania nacional, longe de ser um conceito abstrato, é confrontada por um conjunto complexo e interligado de ameaças externas e internas. Compreender sua natureza específica é crucial para qualquer debate sobre a defesa da autonomia nacional.

Ameaças Externas: A Pressão Sistêmica e Estratégica

As ameaças externas evoluíram da clássica ameaça militar para formas mais sutis, porém igualmente impactantes, de coerção e influência, como:

A – Guerra Híbrida e Desinformação: A soberania de um Estado moderno reside não apenas em seu território físico, mas também em seu espaço informacional. Campanhas orquestradas de desinformação, frequentemente financiadas ou incentivadas por atores estrangeiros, visam polarizar a sociedade, erodir a confiança nas instituições democráticas (como TSE, Congresso) e paralisar o processo decisório. Essa interferência, difícil de atribuir diretamente a um Estado-nação, é um ataque direto à autodeterminação política, pois manipula a vontade popular e condiciona as escolhas nacionais.

B – Dependência Tecnológica e de Dados: A soberania tecnológica é talvez o novo front mais crítico. A dominância de big techs norte-americanas e chinesas e a dependência de hardware e software estrangeiros em setores críticos (defesa, energia, finanças) criam vulnerabilidades estratégicas. O controle de dados da população brasileira por empresas estrangeiras (soberania de dados) representa uma fuga de informação valiosa que pode ser usada para manipulação de mercado e influência política.

C – Pressões Geopolíticas e Alinhamentos Automáticos: A rivalidade estratégia EUA-China coloca o Brasil em uma posição delicada. Ambos são parceiros comerciais cruciais, mas possuem projetos políticos antagônicos. Um alinhamento automático ou excessivamente ideológico com qualquer um dos polos pode comprometer a autonomia decisória do país. Pressões para aderir a sanções contra terceiros países (ex.: Rússia), escolher lados em conflitos distantes ou renunciar a parcerias tecnológicas e de infraestrutura vantajosas em nome de alianças são formas concretas de limitação da soberania.

D – Cláusulas em Acordos Comerciais: Tratados internacionais, como o potencial acordo entre Mercosul e União Europeia, podem conter cláusulas que limitam a capacidade do Estado de implementar políticas industriais (compras governamentais, proteção de nascentes indústrias), sanitárias (barreiras a produtos específicos) ou ambientais. A soberania é cedida parcialmente em troca de acesso a mercados e o desafio é negociar termos que não impeçam o desenvolvimento nacional.

Ameaças Internas: A Erosão Sistêmica e a Perda Concreta de Controle

As ameaças internas são, em muitos aspectos, mais imediatas e tangíveis, representando uma falha do Estado em exercer sua autoridade básica, como:

A – Crise e Instabilidade Institucional: A constante guerra entre os Poderes da República (Executivo vs. Legislativo vs. Judiciário), a judicialização excessiva da política e a politização das instituições de controle criam um ambiente de paralisia e imprevisibilidade. A fraqueza interna convida a pressões externas.

B – Necropolítica e Perda de Território: A mais grave e visceral violação da soberania é a perda efetiva do controle territorial. O domínio de vastas áreas de periferias urbanas e regiões rurais por milícias e facções criminosas, que impõem suas próprias leis, controlam a economia local e contestam o monopólio estatal da violência, é a negação prática do conceito de soberania. O Estado é ausente ou cooptado. Esta “soberania ilegal” representa um desafio existencial à autoridade nacional.

C – Dependência de Commodities e Desindustrialização: Um modelo econômico baseado predominantemente na exportação de recursos naturais (minério de ferro, soja, petróleo) com baixo valor agregado torna o país refém da volatilidade dos preços internacionais e da demanda externa. A perda da base industrial enfraquece a soberania tecnológica e a capacidade de defesa.

Frente Ampla: Mecanismo de Crise ou Projeto de Nação?

Uma Frente Ampla não é um partido político, uma ideologia unificada ou um bloco parlamentar coeso. É uma estratégia política de convergência. Trata-se de uma aliança suprapartidária e plurideológica, geralmente temporária, construída em torno de uma agenda mínima comum, formada para enfrentar uma ameaça percebida como existencial à ordem democrática ou para viabilizar um projeto nacional urgente que transcende divergências programáticas. Sua composição é inevitavelmente ampla e desconfortável, agregando atores que estão em lados opostos do espectro político em questões econômicas e sociais – de partidos de esquerda e centro-esquerda a setores da centro-direita liberal, além de movimentos sociais e, potencialmente, representantes de setores econômicos como agronegócio e indústria. O que os une é um denominador comum específico, não uma visão de mundo completa.

Isso levanta a questão fundamental sobre sua natureza: a Frente Ampla é um instrumento tático, um “mal necessário” para superar uma crise aguda (como um governo de transição pós-impeachment ou a defesa do processo eleitoral), dissolvendo-se após o objetivo ser cumprido? Ou pode evoluir para um projeto estratégico de governança, um pacto social mais duradouro capaz de gerar estabilidade e conduzir reformas estruturais consensuais? A tensão entre sua origem pragmática e a ambição de uma unidade programática mais profunda é o que define seu potencial de sucesso e sua fragilidade inerente. Sem um inimigo claro ou uma meta muito bem definida, suas contradições internas tendem a vir à tona.

Perguntas norteadoras para o debate:

  1. Diante da natureza multidimensional da soberania no século XXI (tecnológica, alimentar, ambiental), qual dimensão deve ser considerada prioritária e inegociável para um projeto nacional, e como uma frente ampla, por definição composta por visões distintas, poderia estabelecer essa hierarquia sem se fragmentar?
  2. A formação de uma frente ampla, ao exigir concessões e a diluição de agendas programáticas específicas em prol de um mínimo comum, é intrinsicamente um fortalecimento da soberania (ao garantir estabilidade e governança) ou uma renúncia a ela (ao abrir mão de projetos de transformação mais profundos para setores da aliança)?
  3. Como o Brasil pode negociar sua inserção internacional na rivalidade EUA-China de forma a preservar sua soberania estratégica, e que tipo de pacto interno (ou frente ampla) seria necessário para sustentar uma posição autônoma e pragmaticamente vantajosa frente a essas pressões externas antagônicas?
  4. A perda de controle territorial para milícias e facções criminosas representa a mais grave e concreta ameaça à soberania nacional hoje. Que concessões políticas e ideológicas seriam inadmissíveis para setores de uma eventual frente ampla na busca de uma estratégia comum e eficaz para reverter este quadro?
  5. A erosão da soberania tecnológica e de dados, com a dominância de big techs estrangeiras, é um problema que exige políticas de Estado de longo prazo. Uma frente ampla, tipicamente focada em objetivos de curto e médio prazo, teria condições de enfrentar esse desafio estrutural, ou sua natureza pactuada a tornaria incapaz de medidas disruptivas nessa área?