Fraude impediu a eleição de um comunista ao Senado por São Paulo
“Senador furtado.” Foi assim que a população paulista se referiu a Candido Portinari (1903–1962) após a divulgação do resultado das eleições estaduais de 1947 em São Paulo. Uma fraude escandalosa na apuração dos votos impediu que o pintor modernista se tornasse o segundo comunista a chegar ao Senado, menos de dois anos depois da eleição de Luís Carlos Prestes.
Portinari se filiou na década de 1940 ao Partido Comunista do Brasil, então conhecido como PCB. À época, ele já era um de mais importantes artistas plásticos do País, conhecido e admirado por obras como O Lavrador de Café (1934), Mestiço (1934), O Café (1945) e Os Retirantes (1944). Nesses trabalhos, sobressai sua visão social progressista, de valorização dos trabalhadores e do Brasil, além da denúncia da pobreza e da desigualdade. A escolha da legenda a se filiar foi natural.
“O Partido era a única opção humanista”, resumiu o filho único do pintor, João Candido Portinari, numa entrevista para o jornalista Osvaldo Bertolino feita em 2012 e publicada no Portal Grabois. “Tentaram intrigar Portinari com o Partido, mas ele morreu comunista. Até o último suspiro ele era do Partido.”
Com o fim do Estado Novo (1937-1945), foram convocadas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Prestes, mais do que confirmar a entrada de Portinari ao Partido Comunista, acabou por convencê-lo a concorrer a deputado por São Paulo, ainda que simbolicamente.
O pintor teve sua candidatura registrada, apresentou-se como “artista do povo” e esboçou uma plataforma, que propunha a democratização da cultura, a sindicalização dos camponeses e a luta contra a carestia. Apesar desses trunfos, Portinari optou por não fazer campanha. “Minha arma é a pintura”, justificou-se, anos depois, numa entrevista à revista Diretrizes.
“Se não se tratasse desse Partido, de maneira nenhuma aceitaria (a candidatura)”, agregou Portinari. “Resolvi aceitar a inclusão do meu nome porque considero o Partido Comunista como a única grande muralha contra o fascismo e a reação.”
O pleito ocorreu em 2 de dezembro de 1945 e os comunistas fizeram bonito em todo o País, elegendo um senador – o próprio Prestes, vitorioso no Distrito Federal – e 14 deputados federais. Só em São Paulo, quatro candidatos comunistas foram eleitos deputados, a exemplo do escritor Jorge Amado. Portinari terminou sua primeira eleição como suplente.
Mesmo minoritária, a bancada comunista agitou os debates da Constituinte, propôs 180 emendas e ganhou ainda mais simpatia popular. Seus parlamentares defendiam pautas como a reforma agrária, a jornada de trabalho de oito horas por dia, a extensão da CLT para os trabalhadores do campo, a liberdade sindical, a liberdade religiosa, o ensino laico nas escolas públicas e o direito ao divórcio.
A nova eleição
A Constituição foi promulgada em 18 de setembro de 1946. Quatro meses depois, em 19 de janeiro de 1947, ocorreram novas eleições gerais. Em São Paulo, para se viabilizar eleitoralmente, o Partido Comunista se coligou com o PSP (Partido Social Progressista), fundado um ano antes por Adhemar de Barros. Foi a forma de contornar o risco de cassação que pairava sobre o PCB.
O acordo previa que, em troca do apoio a Adhemar na eleição ao governo estadual, os comunistas pudessem lançar candidatos não apenas pelo PCB – mas também pelo PSP. A aposta – que se revelaria acertada – era no potencial de votos na legenda de Prestes, Carlos Marighela e Gregório Bezerra.
De fato, os eleitores de São Paulo abraçaram os concorrentes “vermelhos”. Nada menos que 11 deputados estaduais foram eleitos pela legenda do PCB. Das cinco vagas de deputado federal em disputa – para complementar as já preenchidas em 1945 –, duas ficaram com comunistas históricos: Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara foram eleitos pelo PSP.
Já na eleição ao Senado, os comunistas usaram a legenda do PSP para lançar o nome de Portinari. Para suplentes, candidataram-se Waldemar Rangel de Matos, Joaquim Rodrigues Gaspar e Benedito Elpídio Marcondes. De início reticente, o pintor cedeu aos apelos e concordou em entrar na campanha “pra valer”. No artigo “Portinari, vítima do voto impresso”, de 2021, o museólogo Davidson Panis Kaseker relata o vigor de sua candidatura:
- “Convencido da importância de sua contribuição, dada a sua expressiva popularidade conquistada por conta de sua expressão artística mesmo entre as classes mais populares, Portinari põe o pé na estrada, percorrendo as principais cidades paulistas. De manga de camisa e com linguagem simples e direta, desperta simpatia e recebe imensa consagração. Seus comícios atraem multidões. O comício final, no Vale do Anhangabaú, é considerado a maior concentração da história política brasileira até então.”
Quem atestou a popularidades desses encontros públicos entre Portinari e os eleitores foi Diógenes Arruda Câmara: “Ele contava muita história da vida dele, história de quando ele era filho de sitiantes lá em Brodowski – e também histórias outras. Ele gostava de contar muitas histórias engraçadas e, no interior de São Paulo, se gostava muito daquela maneira caipira que ele falava”.
As pesquisas de opinião indicavam que o eleitorado paulista preferia os dois candidatos ao Senado pelo PSP – que, além de Portinari, concorria com o então prefeito de Campinas, Euclides Vieira. Bem atrás deles, o nome mais lembrado era o do empresário Roberto Simonsen, ligado à Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
A fraude
Com as urnas abertas, o favoritismo de Portinari e Euclides Vieira começava a se confirmar. As primeiras parciais da apuração indicavam uma vitória folgada da chapa do PSB/PCB, com números próximos aos de Ademar de Barros. Segundo Kaseker, como havia “o sistema de papeletas em que as cédulas de votação já vinham casadas”, os candidatos majoritários de uma mesma coligação “deveriam manter votação praticamente equânimes”.
Se Adhemar, com 393.637 votos, venceu a eleição ao governo paulista, totalizando 35,24% dos votos válidos, a tendência era um êxito similar de seus candidatos ao Senado. Porém, um estranho pedido de recontagem, respaldado pela Justiça Eleitoral, mudou a disputa. “Ele (Portinari) estava disparado na frente quando solicitaram uma recontagem de votos. A vitória foi dada a seu concorrente Roberto Simonsen”, conta o filho do pintor, João Candido Portinari.
Diógenes Arruda Câmara confirma a versão da fraude: “Nós elegemos um senador, que foi o Cândido Portinari, o grande pintor. Ele foi eleito”. Por que, então, o resultado “oficial” foi outro? Segundo Câmara:
- “Basta dizer o seguinte: o Roberto Simonsen, que havia sido apoiado pelo PSD, pelo Getúlio (Vargas) e por todo mundo, estava atrás da votação de Portinari cerca de 50 mil votos. Essa noite ia ser fechada a ata geral das eleições em São Paulo. Na noite seguinte, para surpresa, os quase 50 mil votos de diferença a favor do Portinari haviam passado milagrosamente… ou melhor dito: foram roubados e passados para Roberto Simonsen. Quer dizer: o Roberto Simonsen não foi eleito pelo eleitorado. Foi eleito pelo Tribunal Estadual Eleitoral de São Paulo. O verdadeiro senador eleito foi Cândido Portinari.”
A retirada de votos no candidato comunista foi tanta que, de primeiro colocado no início da apuração, ele despencou para quarto ao fim da contagem. Muito embora os quatro principais candidatos ao Senado tenham ficado numa espécie de empate quádruplo, a colocação de Portinari não convenceu a ninguém. Com a fraude, faltaram “oficialmente” pouco mais de 3.700 votos para sua vitória:
Eleição para o Senado (São Paulo, 1947)
– Euclides Vieira (PSP): 301.393 votos (15,61%)
– Roberto Simonsen (PSD): 291.555 votos (15,10%)
– César Vergueiro (PSD): 289.858 votos (15,02%)
– Cândido Portinari (PSP): 287.847 votos (14,91%)
“A revolta popular foi grande e Portinari passou a ser chamado de ‘senador furtado’ pelas ruas”, registra Kaseker. “Atas tinham sido forjadas e um recurso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não prosperou – para alívio das elites financeiras que temiam um senador socialista no Congresso Nacional.”
O cerco aos comunistas, imposto pelo governo Dutra e pelo Judiciário, não cessou. Entre 1947 e 1948, o PCB teve o registro cassado, seus parlamentares em todo País perderam o mandato e Portinari se exilou no Uruguai. O pintor morreu em 1962, aos 58 anos. O Partido Comunista do Brasil, por sua vez, só voltaria a eleger um senador em 2006, com Inácio Arruda, no Ceará.




