Foto: Richard Silva

“Morreram? Quem disse, se vivos estão? Não morre a semente lançada na terra. Os frutos virão”. Os versos da poetisa comunista Lila Ripol foram a expressão-símbolo da homenagem aos mortos e desaparecidos do PCdoB e do MR8, realizada na noite desta sexta-feira (17), durante o 16º Congresso do partido, em Brasília. 

Na plateia, a forte presença dos jovens comunistas mostrou que a aposta da escritora estava certa: aqueles que morreram pela ação do autoritarismo hoje inspiram toda uma nova geração. 

O ato contou com as presença das ministras Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e Cidadania, e Luciana Santos, de Ciência, Tecnologia e Inovação e também presidenta do PCdoB, além de familiares de mortos e desaparecidos e dirigentes.

A homenagem também resultou numa exposição fotográfica no saguão do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, onde acontece o 16º Congresso, e na distribuição de livreto com resumos da biografia dos militantes assassinados. A plateia também recebeu fotos dos homenageados, levantadas no ato como forma de reafirmar a presença de cada um na memória do partido e do país.

Conforme a Comissão Nacional da Verdade, o Brasil tem um total de 434 mortos e desaparecidos. Desses, 86 são do PCdoB, o partido que mais perdeu vidas pelos agentes do autoritarismo, e 15 do MR8 (depois PPL, que foi incorporado ao PCdoB em 2019).

Ao final do ato, a Comissão Nacional Memória e Verdade do PCdoB entregou à ministra Macaé Evaristo um pedido para transformar a Casa Azul em um centro de memória. A antiga sede do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) em Marabá (PA) — região próxima ao Araguaia, onde ocorreu a guerrilha comunista — funcionava como um ponto clandestino de tortura e morte na ditadura. 

Memória e verdade

Foto: Murilo Nascimento

“Este foi o partido o brasileiro que mais perdeu lideranças políticas assassinadas pela ditadura militar. E seguiu firme, mostrando que não vai deixar essa história se apagar e ser esquecida, honrando, no dia a dia, esses companheiros e companheiras pela luta que travaram e honrando o nosso país nos mais diferentes espaços”, disse Macaé Evaristo.

A ministra também salientou que o ato de homenagem é um momento importante “para a gente refletir sobre a luta e os desafios que ainda temos no nosso país quando a gente pensa na superação das estruturas autoritárias que ainda estão presentes dentro do Estado brasileiro”. 

Infelizmente, destacou, “quem perde seus filhos, irmãos, pais, vítimas da violência do Estado, ainda não dispõe de uma política estruturada que lhe dê respostas. Quem faz o acolhimento social, quem construiu essa metodologia, são os próprios familiares”.

A presidenta do PCdoB, Luciana Santos, salientou ser indispensável “reconhecer e homenagear a vida e a luta de homens e mulheres que fizeram da coragem uma forma de amor ao Brasil”. E acrescentou: “a história nos conta que aqueles foram tempos duros, de dor e de sacrifício, mas mesmo perseguidos, torturados e assassinados, esses lutadores deixaram ao povo brasileiro um legado que muito nos orgulha”. 

A criação, em 2025, da Comissão Nacional de Memória e Justiça do PCdoB, “é uma forma de dizer que a luta não terminou, apenas mudou de forma. A comissão nasce para fortalecer a busca por verdade e reparação, para exigir justiça aos perseguidos e seus familiares, para que esses militantes tenham finalmente seu lugar na história”, afirmou.

Luciana lembrou, ainda, que “a resistência armada que eles empreenderam rompeu o mito da invencibilidade do regime e acendeu o pavio da redemocratização. E quando, em 1979, a anistia foi conquistada, era a lembrança deles, dos que tombaram por amor ao Brasil, que pulsava no coração da juventude”. 

Ela pontuou que a homenagem a esses lutadores ganha ainda mais força em dias como os atuais, em que a democracia “é posta novamente à prova, em que o autoritarismo tenta ressurgir sob novas formas. E não por acaso os comunistas seguem sendo os primeiros alvos, como a gente está vendo”. 

Coordenador da Comissão Nacional Memória e Verdade PCdoB, o ex-deputado Raul Carrion salientou que a Guerrilha do Araguaia, protagonizada pelo PCdoB e que concentra a grande maioria de vítimas, “apesar de vencida, jogou um papel decisivo para a redemocratização do país e na resistência à ditadura”.

Ele defendeu que o resgate da memória do enfrentamento à ditadura “não é uma questão do passado, mas uma luta do presente como demonstram as tentativas de golpe da ultradireita que culminaram no 8 de janeiro de 2023”. 

Neste cenário, reforçou o caráter da CNMJ-PCdoB, “cujo objetivo é resgatar a trajetória dos comunistas em sua luta contra a ditadura militar, reverenciar os e as camaradas que enfrentaram a ditadura com o sacrifício da própria vida e melhor integrar as inúmeras iniciativas da militância comunista na denúncia dos crimes do regime militar e em defesa de políticas públicas de memória, verdade, justiça e reparação”. 

Eterno quebra-cabeças

Representando familiares dos mortos e desaparecidos, Sônia Haas, irmã de João Carlos Haas, assassinado no Araguaia, também homenageou aqueles que tombaram frente à ferocidade do regime ditatorial. Ao lado do cineasta Edson Cabral, presente ao ato, Sônia viabilizou a produção do documentário “Dr. Araguaia”, que conta a trajetória de seu irmão e está disponível no Youtube.

“Nós, familiares, passamos nossa vida montando um quebra-cabeça”, declarou. Ela salientou que “quando contamos a história de João Carlos, estamos fazendo referência a todos os mortos e desaparecidos porque são histórias similares — de jovens que, de uma hora para outra eram presos ou desapareciam — e têm mesmo sentido. Todas as famílias passaram pela mesma angústia da falta de informação; até hoje lutamos por respostas e não temos os remanescentes ósseos”.

Por fim, destacou: “quando gritamos o nome deles é com dor, mas também com orgulho e força para seguirmos na luta. 

João Orlando Jr., artista e sobrinho de Oswaldão, um dos ícones da Guerrilha do Araguaia, cantou uma música inspirada em poema escrito pelo poeta Marcio Monteiro, vizinho de seu tio em Passa Quatro (MG). A letra lembra que ainda que “massacrem a vida, o amor, o sonho, a paz, a esperança…não irão massacrar os sonhos, a essência que transcende, ultrapassa e sobrevive ainda”. 

Diva Santana, irmã de Dinaelza Santana e cunhada de Vandick Coqueiro, também mortos no Araguaia, lembrou que a Lei 9140/95 — que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 — “é uma conquista da luta do povo trabalhador e dos familiares”. 

Como representante dos familiares na Comissão Nacional sobre Mortos e Desaparecidos, Diva recordou que “muitas mães desses jovens mortos viviam nas portas dos presídios, tomando porrada, xingamentos de generais, simplesmente porque procuravam seus filhos presos”.