Expansão do CV mostra que operações brutais do governo do RJ são inócuas
A operação desencadeada pelo governo do Rio de Janeiro nesta semana — e que resultou em ao menos 121 mortes já confirmadas — chocou por sua brutalidade e por expor milhares de moradores das comunidades da Penha e do Alemão. Apesar do suposto sucesso alardeado pelo governador Cláudio Castro (PL), trata-se de mais uma chacina promovida pelo poder público, que leva dor aos moradores e que em nada abala o crime organizado.
“O Comando Vermelho, desde o seu surgimento, vem se expandindo de forma estável. Não houve nenhum momento de declínio, embora seja o alvo preferencial das operações e embora seja em áreas de Comando Vermelho que ocorreu a maioria das chacinas em operações policiais. Portanto, esse tipo de atuação já provou ser totalmente ineficiente quanto ao avanço do controle territorial armado”, diz Carolina Grillo, professora e coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).
A chacina foi a mais letal entre as operações policiais já feitas no Rio de Janeiro, além de superar o massacre do Carandiru, que resultou na morte de 111 presos em 1992, na cidade de São Paulo. Três das que tiveram mais mortos no estado do Rio desde 2007 ocorreram durante o governo de Cláudio Castro (PL): além da mais recente, estão em seu currículo a de Jacarezinho, em 2021, com 28 vítimas, e da Vila Cruzeiro, em 2022, com 23.
Além disso, desde que Castro assumiu o governo no fim de agosto de 2020, as operações deixaram um total 1.886 mortos. Os dados foram levantados pelo Geni/UFF. No mesmo período, o CV cresceu não apenas no Rio, inclusive sobre áreas de milícias, como por quase todos os estados do Brasil, além de suas conexões internacionais.
Para Carolina Grillo, a resolução dessa chaga depende de um redirecionamento das políticas de segurança e da articulação de uma série de medidas, entre as quais operações de inteligência e investimentos sociais que, de fato, abram outras perspectivas para os jovens que continuam sendo atraídos às pencas pelo tráfico.
“Em geral, a maioria ingressa muito jovem nas redes do tráfico — com 13, 15 anos. Eles são muito novos e não fazem cálculo racional algum. É apenas uma juventude privada de oportunidades num país extremamente desigual que acaba seguindo esse caminho”, argumenta.
Leia a entrevista abaixo.
Portal Vermelho: Avaliando os elementos que vieram à tona até o momento, como é que você avalia a operação realizada nos complexos da Penha e do Alemão nesta semana?

Carolina Grillo: “Essa operação foi planejada sabendo que seria um massacre, porque os complexos da Penha e do Alemão são sabidamente os territórios mais fortificados sob o domínio do Comando Vermelho. Então, a polícia sabia da resistência armada que encontraria e, por isso mesmo, mobilizou 2.500 homens, helicópteros, veículos blindados e estratégias de guerra.
Agora, a escolha por essa abordagem, pela realização da própria operação, revela um descaso com o direito à vida e à integridade física da população que existe naqueles territórios, porque já se sabia que seria uma carnificina.
O fato de terem morrido quatro policiais mostra a irresponsabilidade do ponto de vista do poder público com relação aos seus próprios agentes. Mas, também revela outro aspecto: a relação entre essas quatro mortes e as das outras 117 pessoas, num suposto confronto com a polícia, é de 1 morte de policial para 29 dos demais. Isso é um claro indício de abuso da força e de que possivelmente houve também execuções sumárias. Conforme critérios adotados internacionalmente, a relação que pode ser indicativo de confronto é de 1 para 3”.
Há 40 anos, é aplicado praticamente o mesmo tipo de operação de combate às organizações criminosas e isso não adiantou nada. Na sua avaliação, como é possível “desarmar essa bomba”?
“As políticas de segurança pública no Rio de Janeiro são centradas em operações policiais de incursão armada em favelas. Esse é o método principal de combate ao crime, que já vem sendo adotado há quatro décadas e que, de fato, não surtiu efeito.
O Comando Vermelho, desde o seu surgimento, vem se expandindo de forma estável. Não houve nenhum momento de declínio, embora seja o alvo preferencial das operações e embora seja em áreas de Comando Vermelho que ocorreu a maioria das chacinas em operações policiais. Portanto, esse tipo de atuação já provou ser totalmente ineficiente quanto ao avanço do controle territorial armado. A própria polícia usa a expressão ‘enxugar gelo’ para se referir ao trabalho que faz.
Da mesma forma, têm sido implantadas políticas de aumento do encarceramento e de extermínio de jovens pobres, moradores de favelas, que são insubstituíveis do ponto de vista dos seus familiares e, no entanto, são substituíveis do ponto de vista do Comando Vermelho.
Mesmo as lideranças, quando são presas, controlam o tráfico a partir da prisão, ou quando são mortas, são prontamente substituídas porque não faltam candidatos a assumir posições de liderança nas organizações criminosas.
Ou seja, essas ações prejudicam e interrompem a vida dos moradores das favelas — que têm escolas e unidades básicas de saúde fechadas, são impedidos de ir ao trabalho, vivem experiências de terror, morrem ou perdem seus entes queridos e passam por situações de trauma irreparáveis — mas em nada afetam a continuidade do poder bélico do Comando Vermelho. Inclusive, logo após a operação acabar, as bocas de fumo voltaram a funcionar nos complexos da Penha e do Alemão, que continuam sob domínio do Comando Vermelho”.
É preciso, então, mudar esse tipo de política…
“É preciso que haja um completo redirecionamento das políticas de segurança pública para que elas sejam aplicadas com menos brutalidade e mais inteligência para tentar, de fato, desarticular essas organizações criminosas. São necessárias investigações que ataquem as bases financeiras dessas organizações, regulem os mercados que são explorados por esses grupos, que não são apenas o de drogas, mas também outros mercados legais.
É necessário, também, que haja um empenho em desarticular os nós mais difíceis, a exemplo do que fez a operação Carbono Oculto, realizada pela Polícia Federal, que conseguiu chegar à ligação entre o PCC e fintechs sediadas na Faria Lima, envolvendo grandes volumes de capital que seriam reinvestidos na compra de drogas, armas e outros negócios ilícitos.
Outra recente operação da Polícia Federal conseguiu desarticular uma fábrica montadora de fuzis, que tinha capacidade para produzir até três mil unidades por ano e que abasteciam as favelas do Comando Vermelho. Esse tipo de operação tem uma capacidade de desarticulação do crime organizado muito mais efetiva, muito mais eficiente. E elas podem ser realizadas sem nenhum disparo de tiro, sem causar vítimas inocentes no meio do caminho.
Também é preciso barrar a participação de agentes públicos, de grupos no interior das próprias polícias que mantêm relações de suborno, extorsão e de compra e venda de armas e drogas junto a esses grupos de crime organizados”.
Nesse contexto, como avalia propostas como a PEC da Segurança Pública ou as que aumentam a pena para integrantes de facções e para os crimes de interceptação?
“A PEC da Segurança Pública tem alguns aspectos importantes, como a constitucionalização de uma série de procedimentos que já eram adotados, mas que precisavam ser formalizados, além da questão da unificação do sistema de segurança pública e do estabelecimento de alguns critérios para a distribuição de recursos. Tudo isso é muito importante. No entanto, não se apresenta como solução para o combate à criminalidade. A solução não vai vir de propostas legislativas, e sim de ações executivas, no sentido de reformular as práticas de repressão ao crime para que elas sejam mais eficientes.
Quanto às propostas de aumento de pena, é mais do mesmo. Existe essa insistência em acreditar que um aumento de pena poderá surtir algum efeito dissuasivo, quando, na verdade, só faz aumentar a população carcerária, porque as pessoas ficam presas mais tempo, o que leva também ao aumento do poder das facções, já que elas controlam as prisões.
Além disso, o aumento de pena não produz nenhum efeito dissuasivo. As pessoas que ingressam nessas organizações sabem que serão presas ou mortas. Não há um cálculo racional envolvido e o tempo de pena para cada crime não é algo levado em consideração por esses rapazes. Em geral, a maioria ingressa muito jovem nas redes do tráfico— com 13, 15 anos. Eles são muito novos e não fazem cálculo racional algum. É apenas uma juventude privada de oportunidades num país extremamente desigual que acaba seguindo esse caminho.
Isso é reflexo da ausência de amparo por parte do Estado, de políticas de assistência para que as famílias possam proteger mais os seus filhos num contexto em que eles, desde muitos jovens, já estão expostos às práticas de aliciamento pelo tráfico. Apesar da maioria dos traficantes morrer ou ser presa, existe uma perspectiva de se viver uma vida ‘honrada e gloriosa’ a partir da adoção de práticas guerreiras. Então, isso é muito sedutor para adolescentes, mas não envolve nenhum cálculo racional”.
Qual o papel da opinião pública, da sociedade, daqueles que defendem as ações violentas como essas nessa engrenagem geral?
“A maioria das pesquisas de opinião mostra que a segurança pública é a principal preocupação para os brasileiros. E, no entanto, o debate público a respeito de como promover maior segurança para a população é muito empobrecido. Políticos e autoridades públicas mobilizam o medo da população, prometendo soluções fáceis para problemas complexos, adotando discursos a que a gente costuma se referir, na sociologia, como populismo penal, que são promessas de endurecimento de penas, de endurecimento no combate ao crime e que, aqui no Brasil, se traduzem como encarceramento em massa e extermínio.
E há um senso comum disseminado de que o problema da criminalidade seria a impunidade, o que não é verdade. Pune-se e pune-se muito aqui no Brasil, mas há décadas isso não se mostra eficiente. Falta mais estratégia e um debate mais amplo sobre formas de combater o crime, respeitando os direitos humanos e as garantias democráticas e de maneira mais eficientes”.



