Corina Machado não será homenageada na tradicional procissão das tochas em Oslo, devido a controvérsias por seu Nobel entre ativistas do Conselho Norueguês da Paz

Pela primeira vez em décadas, o Conselho Norueguês da Paz — formado por 17 organizações pacifistas — anunciou que não realizará a tradicional “marcha das tochas” que marca, em Oslo, a entrega do Prêmio Nobel da Paz. A decisão, divulgada na sexta-feira (24), foi justificada pelo desalinhamento entre os valores da entidade e o perfil da laureada de 2025, a venezuelana María Corina Machado, líder da oposição ao governo de Nicolás Maduro.

“Temos grande respeito pelo Comitê Nobel e pelo Prêmio da Paz como instituição”, afirmou Eline H. Lorentzen, presidente do conselho. “Mas precisamos permanecer fiéis aos nossos próprios princípios e ao amplo movimento pela paz que representamos.”

A posição do Conselho não afeta a decisão do Comitê Norueguês do Nobel, responsável formal pela escolha — mas representa um gesto de contestação simbólica e institucional dentro da própria Noruega, raramente vista em torno de uma premiação historicamente associada à diplomacia e à reconciliação.

Um prêmio sob fogo cruzado

O prêmio, no valor de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6,2 milhões), foi concedido a Corina “por seu trabalho incansável pela democracia e por uma transição pacífica na Venezuela”, segundo o presidente do Comitê, Jorgen Watne Frydnes.

No entanto, a justificativa não conteve o coro de críticas que emergiu da América Latina e de parte da comunidade internacional, que vê na escolha um gesto político de alinhamento ao discurso de Washington contra Caracas.

O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz de 1980 e referência da resistência às ditaduras no Cone Sul, publicou uma carta aberta contundente, na qual acusa Machado de “servir aos interesses coloniais dos Estados Unidos”.

“Corina, pergunto-lhe: por que você pediu aos Estados Unidos que invadissem a Venezuela? Quando recebeu o anúncio de que havia recebido o Prêmio Nobel da Paz, você o dedicou a Trump, agressor do seu país. […] A pior forma de violência é a mentira”, escreveu Esquivel.

A carta, publicada no jornal argentino Página 12, reacendeu o debate sobre a coerência moral e política do Nobel da Paz, um prêmio que, ao longo de sua história, já foi marcado por decisões polêmicas — como as de Henry Kissinger (1973) e Barack Obama (2009), ambos associados a intervenções militares.

Críticas regionais e crise de legitimidade

De Havana a Tegucigalpa, governos e lideranças progressistas reagiram com indignação. O presidente cubano Miguel Díaz-Canel classificou a escolha como “um símbolo da politização e do descrédito inimagináveis do Comitê Norueguês”.

O ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya foi ainda mais direto: “Conceder o Nobel da Paz a uma golpista aliada de interesses estrangeiros é transformar o símbolo da paz em instrumento do colonialismo moderno.”

O jornalista espanhol Ignacio Ramonet chamou o prêmio de “a necrose do Nobel da Paz”, comparando o gesto a uma inversão orwelliana de valores: “A paz é guerra.”

Já Michelle Ellner, da plataforma norte-americana Codepink, afirmou que “não há nada remotamente pacífico nas políticas de Machado”, lembrando seu histórico de apoio a sanções econômicas, privatizações e ações desestabilizadoras.

Quem é María Corina Machado

Nascida em Caracas em 1967, María Corina Machado é engenheira industrial e fundadora de movimentos oposicionistas como Súmate e Soy Venezuela. Figura central da direita venezuelana, ela participou do golpe de Estado de 2002 contra Hugo Chávez, assinando o “Decreto Carmona” que dissolveu as instituições do país.

Cassada como deputada em 2014 e impedida de disputar a presidência em 2024, vive hoje na clandestinidade. Conhecida por defender sanções internacionais e até intervenção militar estrangeira, ela tem sido apresentada por seus críticos como porta-voz da agenda norte-americana na Venezuela.

Apesar de se autoproclamar “defensora da liberdade”, sua retórica agressiva e o incentivo a protestos violentos contradizem a tradição pacifista que o prêmio pretende celebrar.

Paz, política e contradição

A contestação ao Nobel de 2025 expõe uma crise de legitimidade no Comitê Norueguês, cuja composição é definida pelo Parlamento da Noruega. O Prêmio da Paz, concebido por Alfred Nobel, deveria, conforme o testamento do inventor sueco, ser entregue a quem promova a fraternidade entre as nações e a redução dos exércitos permanentes.

Desde a década de 1970, porém, diversas escolhas suscitaram acusações de “instrumentalização política”. A concessão a Corina parece confirmar essa tendência: um prêmio que premia a confrontação sob o rótulo da paz.

Analistas em Oslo apontam que o gesto do Conselho Norueguês da Paz — ao recusar-se a celebrar a laureada — pode marcar um ponto de inflexão na credibilidade simbólica do Nobel, sinalizando que o consenso moral que o sustentava está se fragmentando.

Entre a diplomacia e a dissonância

Enquanto a elite política europeia e norte-americana celebra a escolha de María Corina como “voz da coragem civil”, o movimento pacifista e humanitário internacional alerta para o esvaziamento ético do prêmio.

A carta de Esquivel sintetiza essa tensão ao apelar à coerência e ao diálogo: “A paz se constrói dia a dia. Não se conquista pedindo invasões nem alimentando ódios. Um mal não se resolve com outro mal maior.”

No contraste entre a honraria e a recusa de celebrá-la, o Nobel da Paz de 2025 revela menos sobre a Venezuela e mais sobre o próprio mundo que o concede — um mundo dividido entre a diplomacia e o espetáculo, em que até a paz tornou-se campo de disputa política.

Por Cezar Xavier