O trabalhador que sofre uma doença incurável e perde a capacidade de sustento é punido e jogado à miséria ao receber menos do que aquele que ainda pode se recuperar. Foto: iStock

Em um julgamento que pode definir o destino de milhões de brasileiros incapacitados para o trabalho, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi o único até agora a reconhecer a inconstitucionalidade da redução das aposentadorias por invalidez — agora chamadas de aposentadorias por incapacidade permanente.

O voto de Dino, proferido nesta sexta-feira (24), rompeu o silêncio da Corte diante de uma mudança que muitos especialistas consideram um dos maiores retrocessos sociais da Reforma da Previdência de 2019.

“A conversão de um benefício por incapacidade temporária em benefício por incapacidade permanente, sob a égide da nova regra, acarreta uma redução no quantum já percebido pelo segurado, caracterizando uma ofensa explícita à garantia constitucional da irredutibilidade de benefícios”, afirmou o ministro.

Reforma que puniu quem mais precisa

Antes da reforma, o cálculo das aposentadorias por invalidez considerava 80% das maiores contribuições do trabalhador ao longo da vida. Com a Emenda Constitucional nº 103, o valor passou a ser de 60% da média de todas as contribuições, acrescido de 2% por ano que ultrapasse 20 anos de contribuição para homens e 15 para mulheres.

Na prática, quem perdeu definitivamente a capacidade de trabalhar passou a receber menos — muitas vezes menos do que o valor do auxílio-doença, benefício temporário pago a quem ainda pode se recuperar.

Dino criticou duramente essa distorção, chamando-a de “injustiça aritmética e moral”.

“Ao diminuir o valor para benefícios não decorrentes de acidente do trabalho, fere-se a dignidade da pessoa humana, o direito das pessoas com deficiência e os princípios da igualdade e proporcionalidade”, escreveu o ministro em seu voto.

STF dividido: maioria ainda apoia corte

Até o momento, o placar está em 4 a 1 pela manutenção da regra da reforma, com votos de Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Cristiano Zanin e o relator Luís Roberto Barroso contra o entendimento de Dino. Faltam votar seis ministros: Cármen Lúcia, Edson Fachin, Dias Toffoli, André Mendonça, Kássio Nunes Marques e Luiz Fux.

O voto do relator, Barroso, considerou que a redução, embora “ruim”, seria necessária para garantir a solvência da Previdência Social.

“Nem tudo que é ruim ou indesejável afronta cláusula pétrea da Constituição”, afirmou o ministro, defendendo que o cálculo é uma escolha legítima do Legislativo.

A argumentação, no entanto, tem sido duramente criticada por juristas e entidades previdenciárias, que apontam um perigoso precedente de naturalização da injustiça social sob o pretexto do equilíbrio fiscal.

O paradoxo da reforma: o castigo da invalidez

O atual modelo cria um paradoxo cruel: o trabalhador que sofre uma doença incurável e perde a capacidade de sustento recebe menos do que aquele que ainda pode se recuperar. Especialistas chamam o sistema de “benefício punitivo”, pois condena à miséria justamente quem mais depende da proteção previdenciária.

A lógica foi invertida: quem mais precisa da Previdência é o mais penalizado por ela. É uma aberração ética e jurídica: o auxílio-doença é superior à aposentadoria definitiva, o que destrói qualquer noção de justiça contributiva.

Dino: voto técnico e humanista

O voto do ministro Flávio Dino se destacou não apenas pela crítica, mas pela consistência jurídica e humanista. Ele lembrou que a Previdência faz parte da Seguridade Social, conjunto de políticas públicas voltadas à proteção dos mais frágeis, e que não pode ser regida apenas por critérios fiscais.

“A Constituição não admite que a proteção social seja transformada em planilha de contenção de gastos. O que está em jogo é a sobrevivência de quem já perdeu tudo — inclusive a capacidade de trabalhar”, escreveu Dino.

O ministro defendeu que se aplique aos casos de aposentadoria por invalidez a mesma regra dos benefícios concedidos por acidente de trabalho, calculados sobre 100% da média das contribuições.

O julgamento que definirá o sentido da Previdência

O STF julga o Tema 1.300, com repercussão geral, que fixará o entendimento para todos os processos semelhantes no país. Ou seja, a decisão servirá de base para milhares de ações judiciais em que aposentados por invalidez questionam a redução de seus benefícios.

A decisão da Corte poderá consolidar dois caminhos opostos:

  • Confirmar o retrocesso, validando uma regra que empobrece os mais frágeis; ou
  • Restaurar o princípio da proteção social, reafirmando que a Previdência existe para amparar, e não punir.

Entre a solvência e a justiça

A maioria do Supremo tem optado por uma leitura fiscalista da Constituição, sob o argumento de que a sustentabilidade financeira da Previdência é indispensável. Mas o voto de Dino introduz uma reflexão incômoda: até que ponto o equilíbrio das contas públicas pode justificar a negação da dignidade humana?

“O que se discute aqui não é o equilíbrio atuarial, mas o equilíbrio ético de uma sociedade que decide o quanto está disposta a abandonar seus incapacitados”, afirmou o ministro.

Um julgamento que expõe o país

O voto de Flávio Dino isolou-se entre os ministros, mas ressoou fora do Supremo como um grito contra a indiferença institucional. Enquanto a maioria da Corte se apoia em argumentos técnicos e fiscais, o ministro lembrou que a Previdência Social é, antes de tudo, um pacto de solidariedade nacional.

O desfecho do julgamento, ainda pendente, não decidirá apenas uma fórmula de cálculo — decidirá se o Estado brasileiro reconhece o direito de viver com dignidade mesmo quando o corpo já não aguenta mais trabalhar.

Por Cezar Xavier