O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso se despede da Corte com voto a favor da descriminalização do aborto (Foto: Antonio Augusto/STF)

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta sexta-feira (17) que enfermeiros e técnicos de enfermagem podem participar da realização de abortos legais — ou seja, nos casos previstos pela legislação brasileira: estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal.

A decisão, tomada em caráter liminar, também suspende processos penais e administrativos abertos contra profissionais que atuaram em procedimentos desse tipo e proíbe a criação de obstáculos à realização do aborto legal nos hospitais públicos.

“O legislador da década de 1940 não poderia prever que a tecnologia permitiria a interrupção segura da gestação por profissionais não médicos. Não se pode permitir que o anacronismo da legislação penal impeça a proteção de direitos fundamentais”, escreveu Barroso.

Na prática, o ministro estendeu a proteção do Artigo 128 do Código Penal — que impede punição a médicos nesses casos — a outros profissionais da saúde, desde que atuem dentro de suas competências e limites técnicos.

O voto foi o último de Barroso como ministro do STF, já que ele havia anunciado aposentadoria antecipada e deixará o tribunal neste sábado (18). Após seu posicionamento, Gilmar Mendes pediu destaque, o que suspende o julgamento e transfere a discussão do plenário virtual para o plenário físico da Corte.

Decisão busca reduzir “vazio assistencial” no sistema de saúde

A ação foi movida por entidades como a Aben (Associação Brasileira de Enfermagem), a Abenfo (Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras) e o Psol, que denunciaram a escassez de serviços públicos para o aborto legal no país.

O ministro reconheceu um “grave déficit assistencial”: o Brasil possui apenas 166 hospitais habilitados para o procedimento, enquanto 16 mil meninas de 10 a 14 anos tornam-se mães por ano, muitas após violência sexual.

Barroso classificou como “inimaginável” o sofrimento de mulheres e meninas forçadas a levar adiante uma gestação resultante de estupro e afirmou que negar acesso ao aborto legal representa uma “tortura psicológica” e uma violação à dignidade humana e à proteção integral da criança, garantida pela Constituição.

“Questão de saúde pública, não de direito penal”

Poucas horas após a decisão, Barroso também votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, em qualquer circunstância, em outro processo que tramita no Supremo desde 2017.

“A interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal”, afirmou o ministro. “Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado é evitar que ele aconteça por meio de educação sexual, acesso a contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho.”

Enfoque social e desigualdade no centro do voto

Em sua fala, Barroso ressaltou que a criminalização do aborto atinge de forma desproporcional meninas e mulheres pobres, que recorrem a clínicas clandestinas e procedimentos inseguros.

“Mulheres com recursos podem ir ao Uruguai, à Colômbia, à Europa. As pobres, não. São elas que morrem”, disse o ministro.

Ele recordou que nenhum país democrático e desenvolvido do mundo mantém o aborto totalmente proibido e defendeu que direitos fundamentais não podem depender da vontade das maiorias políticas.

“Se os homens engravidassem, o aborto já não seria crime há muito tempo”, afirmou, num de seus trechos mais marcantes.

Contexto jurídico e histórico

Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em três situações:

  • quando há risco de morte para a gestante;
  • quando a gravidez é resultado de estupro;
  • quando o feto é anencéfalo (sem cérebro).

Essas exceções estão previstas no Código Penal de 1940 e foram confirmadas por decisões do STF, como a de 2012, que autorizou a interrupção em casos de anencefalia.

A descriminalização até a 12ª semana é tema de uma ação apresentada pelo Psol, que argumenta que a criminalização fere os direitos das mulheres à vida, à liberdade e à integridade física.

A discussão foi iniciada pela ministra Rosa Weber, que também defendeu a descriminalização antes de se aposentar, e agora está sob relatoria do ministro Flávio Dino, que já se declarou pessoalmente contrário à mudança, mas afirmou que julgará “com base na Constituição”.

Legado e impacto político da decisão

A decisão de Barroso, proferida às vésperas de sua saída, consolida uma marca de seu legado no STF — o de buscar conciliar interpretação constitucional e sensibilidade social.

O ministro foi um dos principais defensores da leitura progressista dos direitos fundamentais e, neste caso, enfrentou um dos temas mais polarizados da política brasileira. Ao ampliar o acesso ao aborto legal, Barroso tenta corrigir o que chama de “defasagem moral e institucional” entre a Constituição e a realidade do sistema público de saúde.

A medida tem efeito imediato e pode influenciar a futura composição do STF, abrindo espaço para um debate mais amplo sobre autonomia das mulheres, laicidade do Estado e modernização do Código Penal — ainda baseado em preceitos de mais de 80 anos.

O que vem agora

A liminar de Barroso precisa ser referendada pelo plenário do Supremo, o que pode ocorrer nas próximas semanas. Enquanto isso, o Ministério da Saúde e os conselhos profissionais de enfermagem devem ser notificados para adequar protocolos e garantir a segurança jurídica dos profissionais.

A discussão sobre a descriminalização até 12 semanas, por sua vez, permanece suspensa. Não há data definida para o julgamento, que deverá ser retomado sob a presidência de Edson Fachin e relatoria de Flávio Dino.

Por Cezar Xavier