Crítica ao Projeto de Resolução (II)
(continuação de artigo anterior)
7. Indo das aparências à essência, o capital, na sua evolução, sobretudo ao investir pesadamente no desenvolvimento, ao longo das décadas 1970-1980-1990, em uma nova base técnica de conteúdo micro-eletrônico (ou “digital”), operou um deslocamento do locus de produção de valor, da indústria de transformação para as muitas atividades de trabalho informacional: ciência e tecnologia, projeto e desenho de produtos e processos, artes e cultura em geral, entretenimento etc. É claro que, ao fim e ao cabo, há que se transformar matérias primas minerais, animais ou vegetais em produtos úteis ao trabalho ou ao consumo humano. Mas as cadeias produtivas próprias dessas transformações, além de altamente automatizadas, logo excludentes de trabalho vivo, estão totalmente subordinadas ao trabalho vivo indispensável e insubstituível mobilizado naqueles departamentos de tratamento, registro e comunicação de informação nas formas de artigos científicos, projetos de produtos e processos, atividades artísticas e culturais das mais diversas que visam, no capitalismo, fomentar e incentivar o consumo conspícuo.
8. “A crescente importância de ativos intangíveis (marcas, software, dados e tecnologias patenteadas) nas cadeias de suprimentos globais, etc.” (tese 13) é o resultado direto do acima afirmado. O valor dos ativos tangíveis é função de seus conteúdos informacionais ou, melhor dizendo, do trabalho de homens e mulheres, sob as condições do capital, na produção de marcas, software, dados, tecnologias patenteadas. Esse valor, por ser informacional, não é equalizável em tempo de trabalho. A apropriação desse valor, pelo capital financeiro que comanda inclusive as grandes corporações (ainda) definidas como industriais (Boeing, Nike, Ford, Apple etc.), se dá através das patentes e outros assim chamados “direitos de propriedade intelectual” (DPIs). A tese 13 desmente a tese 14 pois, aqui corretamente, aponta para a dimensão central que o trabalho informacional adquiriu no capitalismo contemporâneo, daí nos exigindo que entendamos as características próprias do atual regime de acumulação, distintas das anteriores, ainda que comandadas, no limite, pelas mesmas “leis imanentes”.
9. Escreveu Marx, n’O Capital:
Quanto mais as metamorfoses de circulação do capital forem apenas ideais, isto é, quanto mais o tempo de circulação for = zero ou se aproximar de zero, tanto mais funciona o capital, tanto maior se torna sua produtividade e autovalorização (K. Marx, O Capital, Livro 2)
Marx não podia, à sua época, aprofundar a investigação sobre as comunicações, seja por se tratar de um segmento político-econômico ainda pouco expressivo relativamente aos segmentos industriais, seja por lhe faltar, também, recursos teóricos que somente a ciência do século XX viria a desenvolver, entre estes, uma teoria científica da informação. Mas o pouco que escreveu, seja n’O Capital, seja nos Grundrisse, apontava muito claramente para a importância do trabalho efetuado nesse campo, hoje em dia muito vasto, para a produção e realização do valor. Quanto mais veloz é a rotação do capital, mais se multiplica o mais-valor extraído do trabalho. A etapa atual do capitalismo, comandada pelo capital financeiro, é determinada pela possibilidade de se reduzir os tempos de rotação ao limite de zero. Por isto, surgiu e hoje já domina as relações das empresas entre si e das empresas com os consumidores, a economia de dados, cuja principal propriedade é permitir “anular o espaço pelo tempo” (Marx, Grundrisse).
10. As plataformas sociodigitais (PSDs) e as corporações que as controlam não podem ser percebidas apenas por suas aparências de “poderoso sistema digital ideológico do imperialismo” (tese 25), embora também o sejam. Elas estão se tornando, ou já se tornaram, o próprio motor do processo de acumulação. Daí que, para os comunistas, não se trata apenas de “regular” o funcionamento dessas plataformas, sujeitando-as a algumas regras aceitáveis pelas democracias liberais. Trata-se de bater de frente com seus próprios modelos de negócios, isto é, com a lógica mesma da economia de dados. Considerando que, para o conjunto da sociedade, as relações através de redes digitais tornaram-se essenciais, assim como é, por exemplo, a energia elétrica, cabe propor e construir um novo modelo para o funcionamento das plataformas apoiadas na tecnologia da internet, que seja de natureza pública e não financiado, nem muito menos controlado, pelo capital financeiro. Considerando, também, que o negócio dessas plataformas se apóia na expropriação, quase sempre gratuita, dos dados sociais produzidos por indivíduos e empresas, cabe propor um novo modelo de negócios que proíba a extração desses dados para fins de comercialização. Evidentemente, são propostas que gerariam um enorme debate, sobretudo porque naturalizou-se, até na esquerda, inclusive no interior do Partido, essa presença aparentemente anódina, indolor, incolor das PSDs nas nossas vidas. Mas como comunistas, armados da teoria de Marx, é nosso papel desnaturalizar a vida sob o capitalismo, denunciar a alienaçãodo ser humano, lutar por um novo mundo possível (ver também 16, abaixo).
11. “O ascenso do neofascismo e da extrema-direita no mundo tem por epicentro os Estados Unidos e deriva da grande crise e de impasses do capitalismo, além do desgaste e esvaziamento da democracia liberal resultante das políticas neoliberais. É a resposta da oligarquia financeira imperialista para tentar bloquear os projetos nacionais alternativos, além de ser elemento de ataque às forças comunistas e revolucionárias” (tese 37). Sim… até o primeiro ponto final. Falta uma análise fina de classes, ausência esta que também vai se revelar em muitas outras teses deste projeto de resolução política.
O neofascismo, antes de mais nada, é um movimento de massas, assim como também o foram o fascismo e o nazismo dos anos 1930-1940. Sua base social, nos países do centro capitalista ocidental ou em países como o Brasil, é constituída, principalmente, por uma grande massa de trabalhadores remetida, pela “acumulação flexível”, para formas aviltantes e materialmente inseguras de trabalho: o precariado. Boa parte desses trabalhadores exibe um padrão de vida e consumo próprio de classe média baixa, habita as periferias urbanas e favelas, coabita com um também gigantesco lumpemproletariado, produto do mesmo padrão socialmente excludente de acumulação, com quem passou a compartilhar seus valores e manifestações subculturais. Os comunistas não dialogam com essa massa pois fomos treinados para agir junto ao cada vez mais esvaziado trabalho organizado.
O neofascismo é financiado por um setor do capital financeiro e industrial que encontra a sua melhorexpressão nos Irmãos Koch ou na “nossa” Faria Lima: são, por um lado, especuladores financeiros, beneficiados pelas políticas anti-regulatórias praticadas pelas democracias liberais desde os anos 1980 e, por isso, militantemente avessos a qualquer proposta de possível retomada de alguns controles regulatórios sobre os movimentos do “capital fictício”. Por outro lado, são os representantes de setores decadentes do capitalismo industrial (indústria petroquímica, mineral, imobiliária etc.) que se consideram prejudicados pelas crescentes pressões sociais contrárias ao assim chamado “aquecimento global”. Este bloco ascendeu ao poder nos Estados Unidos, com Trump, e pretende impor, mundialmente, sua agenda política e mesmo historicamente reacionária.
Não podendo os comunistas esquecer que o alarme a respeito do “aquecimento global” foi dado pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, e que boa parte das ONGs que travam essa luta são financiadas pelo banqueiro George Soros, estamos aí diante de uma disputa entre blocos de capital: contra aquele, colocam-se os investidores nas fronteiras do “novo” capitalismo, os industriais e financistas da biotecnologia, da “reciclagem de lixo”, da “energia limpa”, dos “créditos de carbono”, da “ESG”, dos mercados de “artes”, “cultura” etc. Nos Estados Unidos, aqueles são representados pelo Partido Republicano, de Trump. Estes pelo Partido Democrata, ainda à frente de importantes estados como Califórnia ou Nova York, não por acaso os socialmente mais “progressistas” do país.
No Brasil, carente de capitalistas de ponta tecnológica, o campo “progressista” está cada vez mais reduzido a setores intelectualizados de classe média, aos remanescentes do operariado e de outros grupos de trabalhadores “fordistas”, a parcela do que ainda resta da burguesia industrial nacional, devastada pelas políticas econômicas de sucessivos governos, inclusive de esquerda, implementadas desde a redemocratização do país. Nada demonstra quão ilhado está este setor do que a atual composição do Congresso Nacional e os indivíduos que governam os três mais importantes estados da Federação que, também, deram decisiva contribuição para a indigente composição do atual Congresso.
*Professor Titular ECO-UFRJ. Presidente da Seção Rio de Janeiro da Fundação Maurício Grabois.