Este texto propõe uma análise crítica ao Projeto de Resolução (PR) ao XVI Congresso. Divide-se em três partes por limitações editoriais. Devem, porém, ser lidas em continuidade, conforme a numeração dos parágrafos.

1. Sem caracterizar corretamente o capitalismo contemporâneo, o Partido não conseguirá superar a sua própria crise pois seguirá sem condições teóricas e políticas para intervir nas lutas reais que mobilizam atualmente a sociedade, visando relacioná-las a processos de superação das contradições dessa mesma sociedade.

“O contexto atual é marcado pelo desenvolvimento da crise sistêmica do capitalismo” (tese 3) – sim, mas que crise é essa? “A concentração de riqueza e as desigualdades sociais são características marcantes do capitalismo contemporâneo, agravadas pelo desmonte das políticas de proteção e bem estar social, etc.” (tese 4) – não: são apenas expressões aparentes da essência do capitalismo em sua atual nova etapa. É preciso reconhecer que o capitalismo ingressou em uma nova etapa histórica, assim como Lênin, à sua época, havia reconhecido o “imperialismo” como “nova etapa do capitalismo”. Esta nova etapa pode ser denominada informacional.

2. “Ampliam-se as contradições entre o trabalho e o capital, etc.” (tese 5), daí “as plataformas digitais… fragmentam o trabalho, eliminando direitos e estabilidade” (idem). Errado. A fragmentação ou segmentação do trabalho é um processo iniciado ainda nas últimas décadas do século passado, na transição do antigo padrão dito “fordista” de acumulação para um novo padrão, que denomino “informacional”, mas que David Harvey denominou “flexível”: as “terceirizações”, “subcontratações”, inclusive “pejotização” em larga escala, já integravam, nos anos 1980-1990, uma radical reestruturação, via fragmentação, das relações capital-trabalho. Nos dias correntes, esse processo avançou ao nível das relações individuadas, como é o caso da “uberização” e dos “MEIs”. Mais do que “uberizada”, grande parte dessas relações estão “pejotizadas” ou “meizadas” (permitam-me o neologismo), sobretudo estas que empregam o trabalho especializado e qualificado dos trabalhadores de classe média, com formação universitária (artistas, jornalistas, cientistas, prestadores dos mais diversos serviços pessoais etc.).

3. É precisamente isso posto acima que está descrito, mas não muito bem entendido, na tese 16: “A dinâmica da acumulação do capitalismo levou a um acelerado deslocamento territorial/nacional do locus do dinamismo produtivo, etc.”. Anteriormente, na etapa “fordista” do capitalismo, a “dinâmica da acumulação do capitalismo” levara a uma forte centralização territorial/nacional do locus dinamismo produtivo, com a edificação, num mesmo endereço, de enormes complexos industriais, reunindo milhares de empregados, desde engenheiros(as) até operários(as). O que explica, tanto esta centralização quanto aquela descentralização, é a busca, pelo capital, de reduzir os seus tempos de rotação (sobre isto, ver Marx, O Capital, Livro 2, Seção 1 e 2), busca esta, no entanto, subordinada às possibilidades dadas por sua base técnica. O “fordismo” investiu em forças produtivas que favoreciam a concentração espacial do trabalho, enquanto o investimento nas tecnologias digitais de tratamento e comunicação de informação, a partir dos anos 1970, veio a permitir desconcentrar o trabalho, no espaço e no tempo, abrindo caminho para um novo padrão de acumulação, característico desta atual etapa histórica do capitalismo, na qual nos encontramos. Nesse novo padrão, as etapas de trabalho de pesquisa científica, de projeto, de desenho, de estratégia de marketing, entre outras que demandam trabalho de alta qualidade, permanecem sendo realizadas no centro político-econômicodo sistema (Exemplos: Oregon/Nike; Califórnia/Apple; Japão/Toyota etc.), enquanto que as etapas de fabricação e (se for o caso) de montagem podem ser transferidas para regiões periféricas, visando aproveitar vantagens locacionais em relação aos mercados finais, incentivos fiscais que os países da periferia capitalista estão sempre dispostos a conceder, e o custo barato de uma mão de obra de baixa escolaridade e altas carências materiais. É a velha divisão internacional do trabalho, sob novas formas. Sem dúvida, no longo prazo, esse processo provocou nos países capitalistas centrais, redução nos empregos fabris diretos, mas nem de longe implicou em queda nas rendas que podem auferir cobrando, em todo o mundo, elevados preços por produtos nos quais estão embutidos e ocultos os preços de monopólio derivados dos direitos de propriedade intelectual (DPIs) (ver 8, abaixo).  

4. “O mundo contemporâneo registra transformações significativas nas forças produtivas. Os avanços da denominada Quarta Revolução Industrial, ou da indústria 4.0… cuja razão interna é o aumento da produtividade social do trabalho em escala crescente, etc.” (tese 11). Não está ocorrendo, de fato, uma “quarta revolução industrial” mas apenas o prolongamento da terceira revolução científico-técnica, iniciada com a invenção do circuito integrado, ou “chip”, em 1958, graças a maciços investimentos, com finalidades militares, do Estado dos Estados Unidos. Nada que acontece hoje, na indústria, nas comunicações ou na vida cotidiana, seria possível sem o “chip”. A digitalização generalizada da sociedade na qual estamos mergulhados, foi um processo político-econômico iniciado conscientemente pelos agentes políticos e ideológicos do capitalismo, nos anos 1980-1990. Maciços investimentos dos principais estados capitalistas e muita produção literária apologética levaram à massificação consumista da informática, ao avanço das comunicações móveis, à invenção do CD e TV digitais, ao desenvolvimento da automação industrial, comercial e financeira etc. Entender por que o capital investiu tão pesadamente, tanto em termos de recursos financeiros públicos e privados, quanto em termos político-ideológicos, na digitalização da sociedade, é fundamental para entender-se a própria natureza do capitalismo informacional contemporâneo.

5. “A era digital e seus processos disruptivos impulsionaram uma reorganização da produção e circulação de mercadorias e das relações de trabalho em torno da economia de dados, através das plataformas sociodigitais, controladas e operadas por grandes corporações, as chamadas big techs” (tese 12). Entender a economia de dados nos abre as portas para entender a real natureza do capitalismo informacional contemporâneo. Não basta meramente constatar esse fato na sua aparência. É preciso interpretá-lo na sua essência. “Dados”, nessa acepção, são informação socialmente produzida, captada, organizada e registrada em forma digital (nos circuitos eletrônicos dos “chips”), para fins de comercialização. Esse processo é comandado por estruturas empresariais que o panegírico marqueteiro-ideológico denomina “big tech” mas que comunistas, orientados pela teoria marxista, deveriam denominar corporações mediático-financeiras (CMFs) pois tratam-se de corporações (Alphabet, Meta, Amazon etc.) associadas e controladas por grandes instituições financeiras (Vanguard, Fidelity, BlackRock etc.) que obtém extraordinários, até mesmo, acintosos lucros da comercialização desses dados.

6. “Ao contrário das teses de um suposto novo capitalismo, o capitalismo da era da financeirização global continua fundado nas suas leis imanentes, etc.” (tese 14). Sim, as “leis imanentes” seguem comandando o processo mas assim como a lei universal da gravidade funciona de um modo na superfície da Terra e de modos diferentes em distintas condições do espaço extra-terrestre, as leis do capitalismo também funcionam de modos diversos em suas distintas etapas históricas. Se estamos numa “era da financeirização global”, e se, além disso, a base técnica digital proporcionou a emergência de um novo padrão de acumulação distinto daquele que nascia nos primórdios do século XX (e viria a ser, por Gramsci, denominado “fordismo”) e mais distinto ainda daquele vigente à época de Marx, trata-se de entender esse novo padrão para daí compreender-se as atuais relações de classe e as lutas políticas que desafiam os comunistas neste século XXI. Sem entendermos isso, sequer poderemos entender o avanço do neofascismo em todo o mundo ocidental (tese 37), cuja base social, atraindo milhões de trabalhadores precários (“uberizados”, “MEIs” etc.) e também profissionais de classe média (médicos, advogados etc.), já deveria nos parecer evidente, ainda que lamentável. O que explica isso? Forçoso dizer, o “Projeto de Resolução” não o explica (ver 11 abaixo). E, por via de consequência, não nos propõe um projeto político que responda efetivamente aos desafios do nosso tempo.


*Presidente da Seção Rio de Janeiro da Fundação Maurício Grabois.