Amor que enxerga amor: a luta de uma mãe pela aceitação LGBT+
A história de Marli e Cadu mostra que a maior proteção para um filho LGBT+ começa em casa. Foto: Acervo pessoal
“Mãe sente, não me venha com essa história de que mãe não sente, porque mãe sente.” Foi com essa certeza que Marli de Fátima Linhares Campos, administradora e mãe do Cadu, percebeu que o filho, então com 12 anos, tinha algo para compartilhar. A vaidade, as amizades selecionadas e o jeito reservado eram pistas. Um dia, ao perguntar se ele gostava de alguém da escola e ouvir respostas evasivas, Marli arriscou: “Ah, já sei então, é um menino”. O olhar que se perdeu no chão confirmou sua intuição.
O momento da revelação, porém, foi comandado pelo filho. “Ele me deixou na geladeira por um ano”, conta Marli, rindo. Carlos Eduardo, que sempre foi muito maduro, pediu tempo. Um ano depois, chamou a mãe para a conversa definitiva. “A minha obrigação era te dizer que não importa quem seja, a mãe vai estar sempre do teu lado para o que der e vier. Só isso”, lembra Marli sobre a garantia que deu ao filho.
Essa naturalidade, infelizmente, ainda é uma exceção. Para Cadu Linhares Caetano, hoje graduando em Relações Internacionais, secretário estadual da UNALGBT-SC e militante do PCdoB, esse acolhimento precoce foi um privilégio que moldou sua vida. “Por eu ter tido esse acolhimento tão positivo desde tão cedo, eu me sinto obrigado, de certa forma, a trabalhar para que as pessoas tenham esse mesmo acolhimento que eu tive.”
Da dúvida à missão: o nascimento de uma ativista
Decidida a não “pecar” por falta de informação, Marli buscou saber mais sobre diversidade e encontrou a ONG Mães pela Diversidade, de abrangência nacional. Percebendo a carência de uma rede de apoio no Oeste de Santa Catarina, ela não pensou duas vezes. “Trouxe pra Chapecó, pra cá, pro oeste, porque aqui eu não via nada parecido e estava muito precisando.” Foi assim que, há quase cinco anos, ela se tornou a representante do grupo na região.
O trabalho, como ela mesma define, é “bem de formiguinha”. Envolve acolher jovens LGBT+ que foram expulsos de casa, oferecer um ombro amigo e tentar atrair outras mães para a causa. No entanto, esbarra numa realidade dura: a resistência. “Eles participam da vida dos filhos na medida que conseguem, mas não conseguem colocar o rosto em público”, relata. Para Marli, essa é a razão de não desistir: “Se uma mãe não luta, quem vai lutar pelos filhos?”
Cadu vê no trabalho das mães uma potência política única. “Quando chega uma figura tão consagrada, até religiosamente, que é a figura da mãe, falando sobre direitos, sobre saúde, sobre humanizar essa parcela que sofre tanto… tem um outro peso. Para uma sociedade conservadora, talvez ouvir de uma pessoa trans ou gay seja muito difícil, mas muda o cenário quando chega uma mãezinha falando a língua que o pessoal entende: de respeito, de dignidade, de carinho.”
O trabalho das Mães pela Diversidade vai além do discurso. Elas atuam como rede de apoio concreta para famílias em crise: Seja pelo acolhimento, ao ajudar pais que agrediram ou expulsaram filhos LGBT+ a repensarem suas ações; seja pelo enfrentamento da burocracia, ao orientar sobre alteração de documentos e hormonização pelo SUS; ou pela capacitação, ao treinar profissionais da saúde e educação.
O acolhimento como política: do afeto à responsabilização
Enquanto a Assembleia Legislativa de Santa Catarina avança com pautas conservadoras, a resistência incomum ganha força no estado. As Mães pela Diversidade transformaram-se em uma ferramenta poderosa de desmonte de preconceitos através da linguagem do afeto.
Apesar de se declarar “antipolítica” no sentido partidário, Marli pratica uma política do afeto que tem impacto direto na vida das pessoas. Ela já acolheu em sua própria casa jovens desamparados. A experiência a fez sonhar com um projeto mais concreto: a criação de um abrigo específico para jovens LGBT+ rejeitados pelas famílias.
Esse sonho dialoga diretamente com uma das frentes de luta política apontadas por Carlos Eduardo: a responsabilização. “A responsabilização não só dos pais que já cometeram agressão ou negligenciaram, mas sobre os responsáveis por compartilharem ideologias que mantêm a lógica social de pessoas LGBTs na prostituição ou vistas como promíscuas”, explica o militante. Para ele, o abandono familiar não é um acidente, mas parte de uma estrutura que precisa ser combatida com políticas públicas.
O cenário em Santa Catarina é de ataque coordenado. Cadu listou projetos em tramitação que refletem uma agenda nacional da extrema-direita: em Chapecó, um projeto que permite aos pais proibirem filhos de participarem de atividades pedagógicas sobre gênero (incluindo igualdade entre homens e mulheres); uma lei municipal proíbe crianças de frequentarem a Parada LGBT (caso judicializado no Tribunal de Justiça); há também a proibição de pessoas trans em competições esportivas.
“Várias pautas foram importadas diretamente de São Paulo com Ctrl+C e Ctrl+V”, critica Cadu, destacando a importação de modelos de legislação anti-direitos. A ideia simples e objetiva de Marli para um abrigo é, portanto, um ato de resistência prática a essa estrutura.
O futuro imediato preocupa: a disputa ao Senado em 2026 deve polarizar entre dois candidatos do PL, Carol Detone, representante da extrema-direita tradicional catarinense, e Carlos Bolsonaro, que busca refúgio político no estado.
“É uma disputa entre a extrema-direita tradicional e a bolsonarista importada”, analisa Cadu. Neste contexto, o trabalho de base das Mães pela Diversidade aparece não como gesto simbólico, mas como estratégia de sobrevivência em um estado onde a guerra cultural se traduz em políticas de ataque à existência LGBT+.
“Não consigo entender não aceitar”: o peso de uma mãe na Parada
Para Marli, a não aceitação é um quebra-cabeça. “O que é difícil de acontecer, pra mim, é justamente o contrário: é não enxergar os filhos com os olhos de amor”. É essa fala sincera, sem roteiro, que ela leva para os palanques das Paradas do Orgulho LGBT+. Ao subir no carro de som, Marli vê nos olhos dos jovens uma mistura de alívio e esperança. “Uma fala de uma mãe tem um peso que você não tem ideia”, reflete.
Esse impacto é algo que Cadu testemunha e analisa politicamente. Ele conecta a falta de afeto na adolescência à sexualização posterior da comunidade. “Como não é da norma heteronormativa, a sexualidade LGBT é vista como pecaminosa. Então, a população acaba buscando meios de sociabilidade em ambientes clandestinos ou da noite para explorar sua sexualidade sem discriminação”, pondera.
O militante defende que a naturalização do afeto entre adolescentes LGBT+, assim como ocorre com os heterossexuais, é crucial para um desenvolvimento saudável e para desconstruir estigmas. A luta da mãe, portanto, não é só por aceitação, mas por uma nova forma de socialização.
A sua batalha, conclui Marli, já não é só pelo Cadu, que é “super bem resolvido”. É por todos aqueles que ainda precisam se esconder na Parada para os pais não os verem na televisão. Enquanto isso, na trincheira política, Carlos Eduardo trabalha para que conferências e legislações traduzam em direitos o amor incondicional que ele teve o privilégio de conhecer dentro de casa. Juntos, mãe e filho mostram que a revolução do afeto e a disputa por políticas públicas são faces inseparáveis da mesma luta por dignidade.
(por Cezar Xavier)