Saúde e Democracia no Brasil: Desafios, Financiamento e o Controle Social
No Brasil, saúde e democracia são pilares interdependentes e sob tensão constante. Uma democracia robusta é essencial para garantir direitos sociais, como a saúde, e um sistema de saúde equitativo fortalece a cidadania. Contudo, ambos enfrentam desafios que comprometem sua efetividade e a qualidade de vida da população.
O Financiamento Insuficiente do SUS
O Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas universais do mundo, tem sua capacidade continuamente minada por desafios históricos e recentes em seu financiamento. O investimento público em saúde no Brasil é menor do que em nações com sistemas comparáveis. A trajetória do financiamento do SUS pode ser segmentada em fases distintas:
- 1988-2016: Período de Subfinanciamento Crônico Com a Constituição Federal de 1988, a saúde foi reconhecida como direito de todos e dever do Estado, criando o SUS. No entanto, desde o início, o sistema enfrentou subfinanciamento. A ausência de fontes estáveis e a alocação inadequada de recursos impediram o SUS de atingir seu potencial. Uma lacuna persistente entre a promessa constitucional e a realidade orçamentária resultou em carências na infraestrutura, recursos humanos e oferta de serviços.
- 2016-2023: Período de Desfinanciamento Estrutural Esta fase foi marcada pela Emenda Constitucional nº 95 (EC 95) em 2016, que instituiu o Teto de Gastos. Essa medida limitou o crescimento das despesas primárias da União, incluindo saúde, à inflação do ano anterior, por 20 anos. O impacto na saúde foi devastador: o orçamento do SUS deixou de crescer em termos reais, ignorando o aumento da população, envelhecimento e novas tecnologias. O investimento per capita em saúde pública foi reduzido, configurando um desfinanciamento. A pandemia de COVID-19 expôs brutalmente as consequências dessa política, encontrando um SUS fragilizado e com capacidade reduzida para responder a uma crise sanitária de proporções inéditas.
- Pós-2023: Lenta Retomada do Financiamento Após anos de desinvestimento e as lições da pandemia, iniciou-se um movimento de revisão das políticas fiscais. A aprovação da Emenda Constitucional nº 126 (PEC da Transição) no final de 2022, e a posterior revogação da EC 95 com a instituição do Novo Arcabouço Fiscal em 2023, permitiram a alocação de recursos adicionais para a saúde. Este é um processo de retomada lento e desafiador, visando recompor um patamar de investimento corroído ao longo de anos para reestruturar e fortalecer o SUS.
Essa trajetória orçamentária reflete-se em desafios palpáveis:
- Acesso e Qualidade dos Serviços: Filas para consultas, exames e cirurgias; escassez de profissionais; infraestrutura precária.
- Má Distribuição de Recursos: Concentração desigual de leitos e profissionais acentua iniquidades regionais.
- Judicialização da Saúde: Busca judicial por tratamentos específicos pressiona orçamentos e desorganiza o planejamento do SUS.
- Ineficiência e Corrupção: Falhas na gestão e desvios de verba persistem, comprometendo eficácia e transparência.
A Democracia Brasileira sob Pressão e Sua Conexão com a Saúde
A democracia brasileira, embora consolidada, está sob constante pressão. Polarização política, desinformação (fake news) e crises de credibilidade por escândalos de corrupção são desafios prementes. A profunda desigualdade social e econômica é um entrave estrutural à participação democrática e ao acesso a direitos básicos, impactando diretamente a saúde. A corrupção desvia recursos cruciais do SUS, enquanto a desconfiança e a polarização política dificultam a implementação de políticas de saúde eficazes, como visto na pandemia de COVID-19, onde a politização da ciência comprometeu a resposta sanitária.
As Emendas Parlamentares: O maior desafio a ser superado no financiamento saúde
As emendas parlamentares (individuais, de bancada e de relator) permitem a legisladores direcionar parcelas do orçamento federal a suas bases eleitorais. Somente em 2024 foram gastos R$ 24,8 bilhões do piso da saúde em Emendas Parlamentares. Embora possam atender a demandas locais específicas, seus impactos são complexos e ambivalentes, as críticas e desvantagens são substanciais:
- Fragmentação do Planejamento: O direcionamento é frequentemente motivado por interesses políticos ou eleitorais, não por critérios técnicos do SUS, gerando projetos isolados ou “elefantes brancos”.
- Clientelismo e Descontinuidade: Emendas podem alimentar práticas clientelistas e gerar incerteza, dificultando o planejamento de longo prazo.
- Paliativo, Não Solução: Atuam como um “curativo” temporário, desviando a atenção do problema central do subfinanciamento estrutural do SUS.
Superando a Mercantilização da Saúde: Um Caminho para a Saúde como Direito
A mercantilização da saúde, que transforma o direito humano fundamental em produto comercial, deve ser veementemente combatida. Para reverter essa lógica e garantir a saúde como direito universal, são necessárias ações sistêmicas e transformadoras:
- Fortalecimento Substancial do SUS: É imperativo um aumento sustentável e progressivo do financiamento público, revisando legislações que limitam investimentos e buscando novas fontes de receita. O fortalecimento da atenção primária é crucial, assim como a expansão da rede pública e a implementação de gestão qualificada para combater ineficiências e corrupção.
- Regulação Robusta do Setor Privado: Agências como ANS e Anvisa precisam ser fortalecidas para fiscalizar planos de saúde, controlar preços de medicamentos e serviços, coibindo práticas abusivas.
- Promoção da Saúde como Direito Social: A compreensão e defesa da saúde como direito inalienável é vital, reforçada pela educação e, crucialmente, pelo controle social.
O controle social é a ferramenta essencial que permite à sociedade civil participar ativamente da formulação, execução e fiscalização das políticas públicas de saúde. A participação popular nos Conselhos de Saúde — em âmbitos municipal, estadual e nacional, incluindo os Conselhos Locais de Saúde — é vital para assegurar que o SUS seja verdadeiramente público, universal e equitativo. Essas instâncias são fundamentais para democratizar as decisões e garantir que os recursos e serviços atendam às necessidades reais da população, coibindo desvios e ineficiências. A 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2023, e que mobilizou mais de 2 milhões de brasileiros nas bases, ilustra a importância dessa participação, reunindo milhares de delegados para debater os rumos do SUS e reafirmar a saúde como um direito. Fica claro que a construção de um sistema de saúde robusto e democrático passa necessariamente pela voz e pela ação das comunidades.
O PCdoB tem atuado ativamente na área da saúde e fortalecido o movimento Saúde Pela Democracia, protagonista em diversas lutas. Parlamentares como Jandira Feghali e Alice Portugal têm sido vozes importantes no Congresso, contribuindo decisivamente para conquistas como o Piso da Enfermagem e na contínua batalha pelo fortalecimento e valorização do SUS. A ação política e a articulação social são, portanto, componentes essenciais para garantir que a saúde permaneça no centro da agenda democrática e social.
- Investimento em Inovação e Produção Nacional: É estratégico investir em pesquisa, desenvolvimento e produção nacional de medicamentos, vacinas e equipamentos. Isso não só reduz a dependência externa e barateia custos, mas também fortalece a soberania do país em saúde.
Em suma, garantir um financiamento adequado e suficiente para o SUS, superar a lógica de mercantilização da saúde e fortalecer uma democracia participativa e transparente são objetivos que andam juntos. Eles exigem um grande pacto social, uma forte vontade política e o reconhecimento inquestionável de que a saúde não é uma mercadoria, mas um direito humano universal e um pilar fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.
*Presidente da CONAM, filiado ao PCdoB desde 2001.