Uma das maiores perdas recentes no campo da educação foi a aprovação do Novo Ensino Médio (NEM). Ao invés de resolver os problemas dessa etapa da educação básica, essa medida aprofunda o abismo entre a rede pública e a particular, determinando de antemão quem terá acesso à universidade e quem será empurrado para a formação precária de mão de obra barata. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) responde às demandas da reestruturação produtiva do capital: forma sujeitos convencidos de que são responsáveis pela própria empregabilidade. O chamado “projeto de vida” desloca a formação coletiva para o empreendedorismo como ideal profissional.

Em muitos estados, vigora uma lógica de aprovação que busca apenas melhorar os desastrosos índices educacionais, sem enfrentar a raiz da má qualidade do ensino público. Isso distancia ainda mais a juventude das escolas públicas dos bancos universitários, colocando-a em competição desigual com a rede privada. Não se trata apenas de um problema conjuntural. Historicamente, a universidade pública brasileira foi concebida como espaço restrito, negado às filhas e filhos da classe trabalhadora, sobretudo negros, indígenas e mulheres.

É nesse contexto que os cursinhos populares emergem como estratégia fundamental. São frutos dos movimentos sociais, especialmente do movimento negro, que desde as décadas de 1980 e 1990 vêm organizando iniciativas para enfrentar a produção do fracasso escolar alimentado pelo sistema educacional.

Do ponto de vista histórico, os cursinhos populares não são novidade. Desde os anos 1950 existem experiências isoladas, mas ganharam maior fôlego com a democratização do acesso ao ensino superior, fruto de políticas como o ENEM, o REUNI e as cotas raciais e sociais. Movimentos políticos diversos perceberam seu potencial de enraizamento social: MST, PSOL e organizações de juventude construíram experiências nesse campo, criando vínculos sólidos com o povo. O desafio do nosso Partido é compreender essa potencialidade também como estratégica.

Sobretudo porque os cursinhos não se limitam a preparar para os exames de ingresso ao ensino superior: tornam-se espaços de formação crítica e política, herdeiros da tradição da educação popular. Ao reconhecer os saberes dos sujeitos e estimular a leitura crítica da realidade, os cursinhos comunitários subvertem a ordem excludente que reserva a poucos o direito de sonhar com a universidade. São espaços da luta de ideias, onde se pode ligar as lutas imediatas, como o acesso ao ensino superior, à luta política mais geral. Mas isso, camaradas, depende da presença organizada e efetiva das forças avançadas.

Para quem tem participado de reuniões, encontros e fóruns do PCdoB, é comum ouvir a crítica de que não estamos “nas bases” ou “nos territórios”. Aqui, como geógrafa, considero necessário refletir melhor sobre esses conceitos à luz da ciência geográfica.

O território, de modo geral, é entendido como espaço habitado ou apropriado por e a partir de relações de poder. Como afirma Rogério Haesbaert, é simultaneamente material e simbólico: envolve tanto o controle político e econômico quanto o pertencimento social e cultural. Assim, o território não é apenas um recorte físico, mas uma construção social e histórica, permanentemente tensionada.

No entanto, quando falamos da necessidade de presença no cotidiano da classe trabalhadora, talvez o conceito geográfico mais preciso seja o de lugar. Lugar é o espaço vivido, o espaço das relações cotidianas, onde se entrelaçam dimensões econômicas, políticas, afetivas e culturais. Para Milton Santos, é no lugar que o global se concretiza, articulando escalas e revelando contradições. Assim, se o território remete à apropriação, ao controle e à identidade, o lugar remete à experiência vivida, às práticas concretas e aos significados do dia a dia.

Quando afirmamos que o PCdoB precisa estar “nos territórios”, talvez o termo mais adequado seja justamente estar nos lugares: participar da vida prosaica, compartilhar experiências, construir vínculos e atuar na concretude dos bairros e comunidades. Os cursinhos populares, nesse sentido, são ferramentas privilegiadas. Eles não apenas se instalam fisicamente em determinados locais, mas criam lugares de encontro, aprendizagem e mobilização, onde se produzem pertencimento, consciência crítica e solidariedade. Ajudar jovens a acessar o ensino superior é mais do que abrir portas individuais; é disputar consciências, mostrar que não é a lógica individualista ou a disciplina de “brigadeiro” do Novo Ensino Médio, que busca naturalizar o trabalho informal, que deve conformar nosso destino. É afirmar que o direito à educação de qualidade só se dará pela luta coletiva.

Em um momento de refluxo eleitoral e de dificuldades para reafirmar nossa identidade revolucionária, torna-se evidente que o terreno eleitoral, por mais importante que seja, não é suficiente para expandir nossa influência política e nossa base social. O PCdoB possui acúmulo reconhecido na defesa da educação, seja na frente institucional, no movimento estudantil ou nos sindicatos, e o desafio que se coloca é transformar esse patrimônio em práticas concretas que consolidem nossa presença social.

Hoje, temos exemplos vivos desse processo em várias partes do país: o Cursinho Dom Quixote, em Belo Horizonte e Contagem (MG); diversos polos do Cursinho Ocupa, em São Paulo; e, mais recentemente, o Cursinho Popular Professora Clarice, em Salvador (BA), entre tantas outras iniciativas. Muitas dessas experiências foram fortalecidas, em 2025, por uma importante política do Ministério da Educação, o CPOP, que assegura financiamento a cursinhos populares e demonstra a potência dessa estratégia. O desafio agora é articular essas iniciativas e, por meio da organização partidária, avançar na construção da Rede Ocupa de cursinhos populares em todo o país.

Assim, os comunistas se fazem presentes nos lugares, no sentido epistêmico da ciência geográfica, como espaços do cotidiano vivido, onde se entrelaçam dimensões materiais, simbólicas e políticas. O lugar não é apenas cenário estático, mas componente dinâmico dos processos sociais, econômicos e culturais, onde se expressam contradições globais e especificidades locais. Pensar globalmente e agir localmente é chave para enfrentar a lógica do capital a partir das lutas concretas da classe trabalhadora em seus locais de moradia, trabalho e estudo.

Apenas a posse e a gestão coletiva do espaço, com a intervenção direta dos sujeitos e de seus múltiplos interesses, podem produzir transformações profundas na sociedade. É nesse espaço político e ideológico, modelado por elementos históricos e naturais, que os cursinhos populares se tornam instrumentos de resistência e emancipação. Fortalecer esses lugares significa também fortalecer a luta institucional, pois quem enxerga o PCdoB apenas como legenda eleitoral ainda está longe de compreender o papel estratégico de um partido comunista: ser força organizada, enraizada e capaz de disputar hegemonia em todas as dimensões da vida social. Trata-se de levar à prática o lema: “estar com o povo, lutar com o povo”, não como repetição de palavras, mas como síntese de um projeto coletivo de emancipação.

*Secretária de Formação e Propaganda do PCdoB/BA e Coordenadora do Cursinho Popular Professora Clarice