Cosmopercepção e Auto-organização: formas alternativas de vida anticapitalista

Os povos e comunidades tradicionais de matriz africana sustentam modos de vida que confrontam diretamente a lógica do capital. A organização comunitária dos terreiros, o uso coletivo da terra, a centralidade do cuidado, da ancestralidade e do equilíbrio com a natureza, expressam valores civilizatórios anticapitalistas. São experiências de resistência que, como bem apontou Lélia Gonzalez, “afirmam uma brasilidade negra e plural, forjada na dor, mas também na criatividade e na dignidade”.

A cosmopercepção africana, que valoriza o tempo cíclico, o sagrado como parte da vida cotidiana e o respeito aos ancestrais, nos ensina que a luta socialista no Brasil precisa ir além da crítica à propriedade privada e incluir a defesa radical das memórias, das culturas e das subjetividades oprimidas.

O papel do PCdoB na luta antirracista e anticolonial: um chamado à direção partidária

O Partido Comunista do Brasil, ao longo de sua trajetória, acumulou importantes contribuições à luta contra a opressão racial. Porém, é chegada a hora de avançar qualitativamente, incorporando as lutas dos povos tradicionais de matriz africana como eixo estratégico da revolução brasileira.

Para isso defendemos:

● O fortalecimento institucional e orçamentário da Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana;

● A transformação do Decreto 6.040/2007 em Lei Federal;

● A priorização do Governo Federal na tramitação e aprovação, no Congresso Nacional, do PL 1.279/22, denominado PL Makota Valdina, que visa instituir o Marco Legal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana no Brasil, contra os ataques da extrema-direita, das bancadas: do boi, da bala e da bíblia, bem como do lobby fundamentalista;

● A aplicação plena da Convenção 169 da OIT, com a garantia do direito à consulta prévia, livre e informada;

● A inclusão, no programa partidário, do combate ao genocídio, etnocídio e epistemicídio dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, como parte da luta socialista no Brasil;

● A valorização dos saberes tradicionais, da cultura afro-brasileira e da autodeterminação dos povos de axé;

● A formação de quadros partidários com perspectiva decolonial, antirracista e afrocentrada;

● A defesa dos terreiros e territórios de matriz africana contra a violência, a discriminação, o racismo ambiental e o avanço do fundamentalismo conservador e neopentecostal;

● A soberania e a segurança alimentar e nutricional desses povos, garantindo a efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada;

● A ampliação, com fortalecimento institucional e orçamentário, das políticas públicas afirmativas, reparatórias e/ou compensatórias ao crime de lesa-humanidade que foi a escravidão negra transatlântica.

Pela unidade do proletariado, reconhecendo os atravessamentos de gênero, raça e dos povos tradicionais, na construção de um novo projeto de civilização

O PCdoB tem em sua trajetória a marca da luta internacionalista, da defesa dos trabalhadores e da construção de uma sociedade sem exploradores e explorados. Neste novo ciclo histórico, devemos reconhecer que a luta de classes no Brasil passa inevitavelmente pela valorização dos valores civilizatórios negros e pela luta em defesa dos povos tradicionais de matriz africana.

Como afirmou Clóvis Moura, “a estrutura econômica e social do Brasil se construiu sobre a espoliação do trabalho negro e sobre o silenciamento histórico de sua cultura e resistência”. O Estado brasileiro, desde sua origem, operou como instrumento de reprodução do racismo estrutural, promovendo o genocídio físico, o etnocídio cultural e o epistemicídio intelectual dos povos afrodescendentes.

Jorge Amado, comunista convicto e profundo conhecedor da religiosidade afro-brasileira, escreveu com clareza em sua literatura sobre a perseguição institucional aos terreiros e sobre o racismo como pilar do Brasil oficial. Sua obra reafirma a necessidade de valorizarmos os saberes e modos de vida do povo de santo como expressão legítima da identidade nacional oprimida.

A UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), braço histórico do movimento negro comunista, tem reiteradamente denunciado que a luta de classes no Brasil é indissociável das dimensões de raça e gênero. A superexploração da força de trabalho negra, majoritariamente feminina, demonstra que a opressão racial é funcional à lógica capitalista de dominação.

O racismo no Brasil é estrutural, institucional e histórico. Desde a escravidão, passando pelas políticas eugenistas da Primeira República, até a atual criminalização dos saberes afro-brasileiros, vivemos sob um regime de apagamento e violência planejada contra os povos de matriz africana. Essa perseguição não é um desvio: é uma estratégia do capital para inviabilizar formas alternativas de convivência, de poder e de espiritualidade.

Como afirmou a filósofa Sueli Carneiro, vivemos um projeto de genocídio civilizacional, cujo objetivo é inviabilizar a existência negra em todas as suas dimensões. A luta dos povos de axé não é folclórica, mas profundamente revolucionária: desafia o Estado burguês, a colonialidade do saber e a hegemonia eurocentrada.

A construção do socialismo brasileiro exige que enfrentemos a longa noite colonial que ainda paira sobre o nosso povo. Significa romper com as estruturas que sustentam o genocídio negro, a destruição dos terreiros, o apagamento das memórias africanas. Sem os povos tradicionais de matriz africana, não haverá libertação nacional. Eles representam não apenas vítimas da opressão, mas protagonistas de um novo projeto de civilização. 

Como dizia Carlos Marighella, “o povo é o nosso guia”. E esse povo tem corpo negro, tem axé, tem memória de terreiro, tem resistência ancestral. Assim como “é preciso radicalizar, é preciso ir às raízes”. As raízes do povo brasileiro estão nos terreiros, nas casas de axé, nas mulheres negras que sustentam a vida e a resistência. Cabe ao Partido ser instrumento dessa emancipação. O PCdoB deve ser, mais do que nunca, o partido da vida, da diversidade, do socialismo enraizado no chão do povo.

Não há revolução socialista possível sem o povo negro, sem terreiro, sem axé, sem ancestralidade. Como dizia Abdias do Nascimento: “o quilombo é o embrião da nova sociedade”. Cabe ao Partido ser instrumento dessa emancipação. O PCdoB deve ser, mais do que nunca, o partido da vida, da diversidade, do socialismo com a nossa cara, enraizado no chão do povo.

O socialismo brasileiro será negro, ancestral e popular — ou não será!

E será feminista, forjado na força das mulheres negras que carregam nos ombros os terreiros, os quilombos urbanos e a luta pela dignidade do nosso povo.

Por um Brasil antirracista, decolonial e socialista!

Por um PCdoB comprometido com o Povo Tradicional de Matriz Africana!

Axé, socialismo e luta!

Referências

AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

BRASIL. Decreto nº 12.278, de 29 de novembro de 2024. Institui a Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: GONZALEZ, Lélia (Org.). Primavera para as Rosas Negras. São Paulo: Zahar, 2020.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2021.

OIT. Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais. Genebra, 1989.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. São Paulo: Autêntica, 2019.

UNEGRO. Documentos e resoluções da União de Negros pela Igualdade. São Paulo, 2023.

*Membro do Comitê Estadual do PCdoB-RS; Presidente do PCdoB Municipal do Rio Grande (RS); Servidor Público Municipal de Rio Grande. Vice-presidente da UNEGRO/RG.