A dialética ensina que não há contradição sem as partes em confronto. Essa lógica se aplica com profundidade ao Sistema Único de Saúde (SUS), uma das mais ousadas e generosas conquistas da sociedade brasileira. A saúde, constitucionalmente definida como “direito de todos e dever do Estado”, é muito mais que uma política pública; é um farol projetado para iluminar o caminho entre o socialismo e a barbárie, uma fronteira onde se defende a vida em sua plenitude.

O Brasil presentou o mundo com um sistema que materializa o direito humano à saúde através do acesso universal e igualitário. No entanto, essa conquista histórica não está isenta de contradições inerentes ao seu processo de construção e consolidação. Mais do que motivo de orgulho, o SUS deve ser compreendido em sua complexidade, pois sua existência é um campo permanente de disputa de projetos de sociedade.

Dois exemplos paradigmáticos ilustram o impacto transformador do SUS na vida dos brasileiros: o Combate ao Tabagismo e a construção da Assistência Farmacêutica. O primeiro, ancorado em ações de vigilância, promoção e regulamentação, resultou em uma redução de 45% no número de fumantes nas primeiras duas décadas do SUS, alterando profundamente hábitos culturais arraigados. O segundo tirou o acesso a medicamentos da esfera puramente comercial e o elevou à condição de direito, por meio de políticas como o Programa Farmácia Popular.

A base comum por trás dessas vitórias é a Vigilância em Saúde, definida como o processamento sistemático da informação para a ação. Ela é a espinha dorsal que orienta a tomada de decisões, subsidia políticas baseadas em evidências e permite intervenções que vão desde a prevenção de surtos até a regulação de produtos. No entanto, seu desenvolvimento não foi linear, mas fruto de intensa luta política.

A trajetória da Vigilância Sanitária no país é emblemática dessa disputa. A I Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, em 2001, posicionou-se contra a criação da ANVISA, entendendo-a como parte da Reforma Neoliberal do Estado de FHC. A vitória de Lula em 2002 reposicionou as forças, cessando privatizações e reinserindo o Estado como agente central em áreas estratégicas. A I Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica, em 2003, reafirmou o acesso como direito e articulou-o com o desenvolvimento industrial e tecnológico nacional.

O golpe de 2016 adiou ainda mais o debate nacional necessário, fazendo com que a I Conferência Nacional de Vigilância em Saúde (CNVS) só ocorresse em 2018. Nesse contexto, emergiram contradições ainda mais profundas, que orientaram os debates em torno de três eixos centrais: PROTEÇÃO, TERRITÓRIO e DEMOCRACIA.

A pandemia de COVID-19 escancarou a importância vital do SUS. Hospitais e profissionais da linha de frente foram fundamentais, mas foi a infraestrutura de vigilância (rastreamento, informação) e a capacidade logística da assistência farmacêutica (aquisição e distribuição de vacinas e medicamentos) que evitaram uma tragédia ainda maior. Esses componentes não são meros apoios; são elementos essenciais e estruturantes do sistema.

A lição que fica é clara: a força da democracia participativa, expressa nas conferências de saúde, é uma arma poderosa no enfrentamento da contradição central entre um projeto que coloca a vida no centro e outro que a mercantiliza. As escancaradas desigualdades sociais e territoriais ainda presentes exigem mais democracia e mais SUS.

Os desafios são enormes e urgentes: garantir financiamento perene e suficiente, aprimorar a gestão, investir em ciência e tecnologia, valorizar os trabalhadores e fortalecer a participação popular. O SUS, ao estabelecer a centralidade da produção de valores na forma de direitos e não de mercadorias, colocou o Brasil na vanguarda civilizatória. Cabe à sociedade defender essa conquista, pois, como ensina a dialética, não há síntese sem o confronto de teses. O futuro da saúde, e portanto da vida, depende de qual projeto vencerá essa luta permanente.