Partido, para quê? Uma reflexão sobre os impactos da tática eleitoral na organização partidária
Este artigo tem a pretensão de convidar nossa militância a uma reflexão vital para um partido revolucionário como o nosso. Evitarei rodeios para poupar o leitor, serei dura, mas generosa, e os apontamentos que aqui serão feitos têm o intuito de ajudar a preservar nossa história, nossa ideologia e o futuro do PCdoB.
Desse modo, o texto não tem o objetivo de rebaixar a importância da disputa eleitoral, mas, ao contrário, de refletir sobre como fazê-la de forma a permitir o crescimento das ideias do PCdoB no ceio da sociedade, reafirmando nosso caráter.
Para iniciar a reflexão, quero recuperar este caráter, portanto a vocação do Partido Comunista do Brasil. Partido, para quê? Nossa vocação não é, nem de longe, a disputa eleitoral por si só. Somos parte de um movimento comunista internacional, somos um partido de ideologia marxista-leninista, operário e revolucionário. Existimos para combater o capitalismo, a concentração de renda, as opressões e as desigualdades de classe, para construir o comunismo através do socialismo.
O fato é que este partido chega aos seus 103 anos enfrentando muitas dificuldades: problemas organizativos, dificuldade de entranhamento com o povo, baixa adesão às nossas ideias, diminuição da nossa votação eleitoral – em que pese a busca por sucesso nas eleições seja uma prioridade.
Boa parte do nosso tempo é destinada a pensar em como garantir o êxito nos projetos eleitorais. Sem dúvidas, isto é fundamental para transformar a vida do povo e para nossa sobrevivência na política institucional. Mas preciso perguntar: a que custo?
A disputa eleitoral, além das benesses como mais estrutura financeira, maior possibilidade de interferir no jogo político, visibilidade e, em certo momento, contribuição para o crescimento partidário, também trouxe problemas aos partidos de esquerda como o nosso. Quero justamente propor uma reflexão sobre os impactos da disputa eleitoral no desenvolvimento da nossa linha de massas e na organização partidária.
Não podemos permitir que a disputa das eleições comprometa a construção de um projeto coletivo e o fortalecimento do partido enquanto a principal ferramenta de organização do povo. Do mesmo modo, não podemos renunciar à defesa dos nossos princípios, ideologias e valores em nome do voto.
A linha de massas que o partido tem apresentado nos últimos anos é conservadora, generalista e não apresenta o projeto nacional de desenvolvimento formulado por nós mesmos. Ao considerar que vivemos em um país amplamente conservador, ao constatar a vitória da extrema-direita com um discurso radical e ao estabelecer que há uma defensiva estratégica, com correlação de força desfavorável, perdemos a capacidade de traduzir o que pensamos para o povo.
Nesse momento de polarização no Brasil, o partido deve apresentar o socialismo de forma altiva como uma alternativa à sociedade, não se amedrontar com a ideia de que o comunismo é antipopular, e sim atuar para difundi-lo aproveitando o clima de radicalidade que o Brasil vive.
Partindo do pressuposto de que as eleições e os mandatos, por si só, não promovem mudanças drásticas no sistema político de um país, gostaria de propor uma reflexão em torno da forma como nos posicionamos na disputa política atualmente.
Quero, então, elencar alguns elementos que envolvem a discussão citada sobre eleição, linha de massas e organização partidária:
1. O processo de aumento drástico da financeirização das eleições tem sufocado partidos ideológicos. Com o fim do financiamento privado de campanha, os poderosos que habitam o Congresso Nacional, sobretudo oligarcas que estão lá por muitos anos, arranjaram uma nova forma de financiar seus projetos pessoais: as emendas parlamentares com valores astronômicos. Nessa perspectiva, creio que deveria ser inegociável para nós defendermos de forma contundente a revisão deste dispositivo que na minha visão é antipovo, sequestra o orçamento público e torna o Estado um refém do Congresso Nacional. É impossível eleger um parlamento menos atrasado com estas regras e termos.
2. O abandono de pautas sociais que, aparentemente, não são populares na disputa eleitoral torna o partido uma organização sem identidade. Devemos, como já citei acima, elencar pautas inegociáveis, faça chuva ou faça sol, faça democracia ou autoritarismo. A análise da conjuntura e da realidade concreta deve servir para conter elucubrações, e não para que abandonemos ideias por conta de um momento desfavorável. O que constrói a identidade de um partido não é apenas seu nome e seu símbolo, mas sim o que, a longo prazo, ele comunica e defende. O poeta Gilberto Gil já nos disse que o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe; e Lênin, muito antes, afirmou que é papel do partido comunista desenvolver a consciência revolucionária na classe trabalhadora, ou seja, revelar ao povo aquilo que ele quer, mas ainda não sabe. Como debater a segurança pública do nosso país sem emitir opinião sobre a legalização das drogas? Como pensar a economia do nosso país sem enfrentar o agronegócio perverso e a burguesia entreguista? Como disputar a consciência do povo sem denunciar a alienação social e política que as igrejas neopentecostais promovem? E aqui, parafraseando João Guimarães Rosa, a vida tem nos exigido coragem.
3. Dessa forma, o modelo eleitoral que o Brasil vive não permite que as eleições sejam um grande palco para disputa ideológica. Nós devemos preservar o caráter histórico do PCdoB de subverter a lógica e ousar questionar o sistema por dentro: disputar o sistema para questionar, e não para se acomodar na manutenção de mandatos eleitorais a qualquer custo. Sendo assim, gostaria de convidar nosso partido a uma reflexão sobre a disputa fratricida por espaços eleitorais. Do ponto de vista organizativo, colecionamos muitos traumas eleitorais. É necessário muito empenho na construção da unidade de um partido comunista. Isso exige uma direção forte, coesa em torno de um projeto coletivo, e não direções malabaristas tentando equilibrar os diversos projetos internamente. Fetichizar o parlamento, adaptar-se ao sistema burguês, são caminhos nocivos para um partido de caráter revolucionário, e devemos redobrar a vigilância.
4. Outro ponto importante quando o tema é organização e eleição é a pauta da renovação. Temos um envelhecimento nas direções do partido, baixo aproveitamento do nosso trabalho de juventude na continuidade da militância no partido e dificuldade de renovação da frente de atuação institucional. Temos feito um movimento importante com a campanha “O Futuro tem Partido”, mas isso por si só não resolverá nosso problema. Para que um partido seja atraente para um jovem, ele precisa ser capaz de representar e canalizar a radicalidade, que é uma característica natural da juventude no mundo e no Brasil. O partido deve ser o lugar onde os jovens enxergam um horizonte de luta, é necessário recuperar o encantamento pela política, e para isto devemos ousar mais. Aqui se encaixam as reflexões feitas no item 2 acima.
5. Aqui a reflexão mais importante de todas, a organização do partido nos movimentos sociais. Ainda que afirmemos que não há dicotomia entre as frentes de atuação, devemos refletir sobre as razões que têm levado a esquerda a perder força nos movimentos sociais depois de ascender ao poder. Por que os sindicatos estão enfraquecidos? Por que o movimento comunitário sofreu tanta desarticulação? Por que os jovens são comunistas na internet, mas não se organizam? Devemos perseguir essas respostas de forma humilde, olhando para a conjuntura, mas também para nós mesmos, reconhecendo que temos contradições e que, muitas vezes, confundimos o povo, ou será que, de fato, não é difícil compreender um arcabouço fiscal?
O conjunto expresso nos 5 pontos acima mistura a conjuntura política dura do Brasil, ao desejo de exterminar partidos como o nosso e uma espécie de ilusão que paira sobre nós, a de que temos condições de agir como se fôssemos um partido numeroso, capaz de sustentar posições contraditórias sem que elas impactem diretamente em nossa diminuição e em um certo descrédito.
Crescer o partido significa escolher com quem nós queremos dialogar e como, sem vacilações, sem abrir mão das nossas convicções. Durante a votação da Constituição Cidadã de 1988 o PCdoB foi o único, repito, o único partido a votar contra a menção da palavra “Deus” no texto da Constituição, fizemos, não apenas, para demarcar opinião, mas para preservar nossa identidade, com fidelidade aos nossos ideais.
Partido, para quê? Para isto.