Enfrentar a dominância financeira – considerações iniciais
parte 1
Dentre as reformas estruturais necessárias para superar os obstáculos “acumulados ao longo do processo histórico do país, agravados em decorrência dos três ciclos regressivos”(87) vividos pelo Brasil, destaca-se mui justamente a do sistema financeiro, especialmente em um tempo em que as “mudanças no capitalismo brasileiro resultaram na dominância financeira sobre o conjunto da economia”(92).
O fenômeno da financeirização não é exclusivamente brasileiro, embora nos países dependentes da periferia capitalista seus efeitos se façam sentir de forma mais aguda. “É uma marca intrínseca do capital”(8) e, desde os anos 1980, tem fornecido o principal meio de acumulação de capital, inclusive para as empresas que se dedicam em algum grau à produção e circulação de mercadorias reais.
“O capital fictício é constituído de ativos financeiros que representam direitos a ganhos futuros, não diretamente vinculados à produção.”(10) É fictício porque parte é constituída por direitos futuros, expectativas de ganhos incertos, mas antecipadamente calculados e apropriados ao patrimônio do titular.
É certo que toda a remuneração do capital provém do trabalho, mas os juros e a especulação com derivativos têm ganhado considerável espaço na divisão do bolo entre os produtores e os donos do capital e, dentre esses, os rentistas tem se sobrepujado aos titulares de meios de produção e proprietários de mercadorias.
Não obstante o poder de convencimento de arsenais nucleares, parcela dos integrantes do Estado nacional dos países dependentes foi cooptada pelos ditames “técnicos” do neoliberalismo, alguns inclusive acreditando na triste máxima “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”.
O interesse essencial da oligarquia financeira, que conta com integrantes brasileiros de menor monta, é reproduzir seu capital em forma de dinheiro sem a necessidade de transformá-lo em meios de produção ou mercadorias. Como já citado, as ferramentas mais efetivas são o recebimento de juros e a especulação com derivativos.
No Brasil, a autoridade monetária é exercida pelo Banco Central do Brasil, hoje autônomo para definir como atingir metas que lhe são cominadas externamente. No caso da manutenção do poder de compra da moeda nacional, é o Conselho Monetário Nacional que fixa a meta de inflação a ser perseguida pelo BCB.
Em termos simples, o que o banco costuma fazer é elevar a taxa de juros para inibir o consumo e assim obrigar os agentes econômicos a venderem suas mercadorias – aqui incluída a força de trabalho – por um preço menor, já que há menos dinheiro em circulação. Pessoas e empresas que têm dinheiro em caixa ficam cada vez mais ricas com o recebimento de juros, mas o inverso ocorre com o Estado brasileiro, que transfere para cofres privados parcela elevada da sua arrecadação, enxugando assim a liquidez que, de outro e desejável modo, seria distribuída em forma de gastos com a máquina pública, investimentos na economia e programas sociais de auxílio emergencial – que os monetaristas reputam como causadores de inflação, pois os fornecedores subiriam os preços diante da oferta maior de dinheiro!
Mais grave hoje do que a autonomia – e mesmo a independência – do Banco Central, é a corrente tentativa de transferi-lo da esfera do direito público para o privado, afastando a influência dos Poderes de Estado e facilitando sua captura pela oligarquia financeira. Hoje a Autarquia é ligada ao Ministério da Fazenda e seu quadro funcional integra o Regime Jurídico Único da União, com garantias de obedecer exclusivamente aos ditames legais.
E quais são eles?
Não obstante a supressão do limite anual de juros e outros quesitos, por Emenda Constitucional em 2003, a Constituição Federal de 1988(a) estabeleceu o que se espera do sistema financeiro nacional:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
E a Lei Complementar nº 179(b), de 2021, que trata da autonomia do BCB, fixou novas missões à instituição, com base em metas fixadas pelo Conselho Monetário Nacional (grifos nossos):
Art. 1º O Banco Central do Brasil tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços.
Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.
Não pode hoje a autoridade monetária cuidar da missão principal sem atender às três missões adicionais – duas inéditas, que tiveram contribuição dos funcionários do Banco Central para sua inclusão no dispositivo legal – que lhe foram cominadas, nem nelas ter desempenho satisfatório com sacrifício do dever principal.
É patente que nem o sistema financeiro nacional, nem o Banco Central do Brasil, nem o Conselho Monetário Nacional tem cumprido fielmente o que hoje já lhe é ditado pela sociedade.
Algumas referências e leituras adicionais, para esta e as próximas duas tribunas:
Nossa página Brasil e o mundo – isosendacz.org
Nosso livro O Dinheiro, sua História e a Acumulação Financeira – https://isosendacz.org/2023/05/17/o-dinheiro-sua-historia-e-a-acumulacao-financeira-livro-completo/
- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
- Lei complementar nº 179, de 2021 – https://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/LCP/Lcp179.htm;
- Sistema financeiro cidadão – https://isosendacz.org/2020/01/20/banco-central-do-seculo-21/;
- Desenvolvimento Equilibrado, um novo conceito – Iso Sendacz; Por Sinal nº 49, de 10.2015 – https://www.sinal.org.br/informativos/porsinal/images_porsinal49/pdf_revista.pdf; também disponível em https://isosendacz.org/2019/12/05/desenvolvimento-equilibrado-um-novo-conceito/;
- Dívida pública como negócio privado – https://isosendacz.org/2022/01/07/a-divida-publica-como-um-dos-melhores-negocio-privado/;
- Autonomia do Banco Central – https://isosendacz.org/2021/02/25/bcb-autonomia-independente/;
- Emenda do crescimento econômico – https://isosendacz.org/2022/06/27/emenda-do-crescimento-economico/;
- E se a decisão do Copom fosse objeto de referendo popular? – https://isosendacz.org/2023/06/26/e-se-a-decisao-do-copom-fosse-objeto-de-referendo-popular/.
E o Projeto de Resolução Política do PCdoB para o 16º Congresso (referências numéricas aos parágrafos do documento) – https://pcdob.org.br/16o-congresso/.