Na noite da última segunda-feira, 26 de maio, Porto Alegre amanheceu com cara de chuva. O céu permaneceu encoberto durante todo o dia, a temperatura foi caindo e a promessa de uma garoa persistente parecia certa. Mas, contrariando as previsões, a chuva não chegou — quem chegou foi o público, em peso, ocupando todos os espaços disponíveis na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced/UFRGS).

A atividade integrou o ciclo de debates “O Futuro tem Partido”, que percorre diferentes cidades do país promovendo reflexões estratégicas sobre os rumos do Brasil e do mundo. O tema da vez não poderia ser mais atual e urgente: “A China, os Brics e um mundo multipolar”, conectando economia, geopolítica e soberania nacional.

O interesse superou qualquer expectativa. Mais de 300 pessoas passaram pelo debate, lotando completamente o auditório da Faced. A organização precisou improvisar uma transmissão ao vivo no saguão da faculdade, onde dezenas de pessoas acompanharam atentos, em pé ou sentados no chão. A disposição do público, mesmo com o frio que apertava ao cair da noite, deu a tônica do que foi um encontro vibrante, mobilizador e provocador.

A relevância do tema se refletiu também na expressiva presença institucional da Universidade. Estiveram presentes o vice-reitor da UFRGS, Pedro de Almeida Costa; a pró-reitora de Extensão, Daniela Pavani; a diretora da Faced, Aline Cunha; e o vice-secretário de Relações Internacionais, Athos Munhoz Moreira da Silva, que fez uma contribuição destacada, ressaltando a necessidade de a universidade aprofundar seus vínculos com instituições acadêmicas do Sul Global, especialmente com a China e os países dos Brics.

Foto: PCdoB POA

Também marcaram presença lideranças de movimentos sociais e organizações da juventude, reforçando o caráter plural e coletivo do debate. Participaram Elis Regina, presidenta da Unegro; Salete Souza, presidenta da UBM; Fabíola Louguercio, presidenta estadual da UJS-RS; Vitória Cabreira, coordenadora estadual da Juventude Pátria Livre (JPL-RS); e Rafael Leal, presidente nacional da UJS. Suas presenças reafirmaram que os temas da soberania, da multipolaridade e da disputa geopolítica dialogam diretamente com as lutas antirracistas, feministas, populares e da juventude brasileira.

A escolha da UFRGS como palco desse debate é simbólica. Fundada em 1934, a Universidade tem sido, há quase um século, referência em formação crítica, pensamento avançado e compromisso social. Por seus corredores passaram gerações de estudantes, professores e militantes que ajudaram a escrever capítulos importantes da história da educação, da democracia e da resistência no Brasil.

E, como não poderia faltar, quem frequenta a Faced sabe que há um personagem que também faz parte desse patrimônio coletivo: a lanchonete do Osvaldo, a mais famosa do campus. Seus salgados, cucas e doces são, sem dúvida, dos melhores das universidades brasileiras. Mais do que alimentar, seu balcão é ponto de encontro, de conversa, de respiro e, muitas vezes, de elaboração política.

A mediação da atividade ficou sob responsabilidade de Niara Dy Luz, Coordenadora Geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFRGS e Vice-Presidenta Sul da União Nacional dos Estudantes (UNE). Na abertura, destacou: “Estar aqui, nesse auditório lotado, é a demonstração de que a universidade pública não se furta a discutir os grandes temas da humanidade, e que a juventude quer, sim, debater o mundo, a soberania e o nosso projeto de país.”

Foto: PCdoB POA

Entre os debatedores, o economista e professor Elias Jabbour, uma das maiores autoridades no estudo do desenvolvimento chinês, fez uma exposição contundente. “Estamos diante da maior experiência de desenvolvimento econômico da história da humanidade. A China não só cresce, ela planeja seu desenvolvimento, constrói sua própria modernidade e rompe, na prática, com a lógica imposta pela hegemonia ocidental”, afirmou.

Jabbour também fez uma análise incisiva sobre os desafios da esquerda no Brasil: “Quem não entender a questão de gênero, a questão racial, LGBTQIA+, está fora do ‘game’ da esquerda brasileira e fora do jogo político. E uma esquerda que não tem como central a defesa da soberania nacional é uma esquerda que não tem razão de existência.”

E completou, propondo uma reflexão teórica: “O atual estágio de desenvolvimento do país e do mundo demanda de nós a necessidade de construirmos novas categorias de totalidade e retomar as antigas, reformulá-las. A partir dessas categorias, nós construirmos uma estratégia e uma tática apropriada para nosso tempo.”

O vereador Giovani Culau Oliveira (PCdoB), propositor da Frente Parlamentar de Diálogo com a China na Câmara Municipal de Porto Alegre, participou como debatedor. Segundo ele, “A Frente vai tornar possível a aproximação entre Porto Alegre e a China em áreas como desenvolvimento econômico, clima, ciência e tecnologia.”

Foto: PCdoB POA

A historiadora e pesquisadora Isis Paris Maia trouxe uma perspectiva histórica e cultural contundente. “O maior feito da humanidade não foi levar o homem à Lua. Do ponto de vista dos direitos humanos, foi acabar com a pobreza extrema na China. 800 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza extrema. O acesso à alimentação, vestuário, moradia, educação e — mais do que isso — à dignidade, foi garantido pelo sistema chinês.”

Isis também ressaltou que “Os Brics, do ponto de vista da transformação sistêmica, podem significar a defesa de uma nova ordem mundial que seja multipolar, com 45% da população mundial e que representa uma alternativa à hegemonia do dólar e ao núcleo imperialista, que são os Estados Unidos e seus aliados.” Ela também destacou a importância do projeto Fios de China, que coordena, na difusão desse conhecimento no Brasil.

A deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB-RS) fez uma intervenção vibrante, conectando o tema da geopolítica global com as lutas populares brasileiras. “Nós queremos um desenvolvimento que tenha a nossa cara. É preciso aproximar o Brasil do povo e pensar um modelo econômico que não distancie a riqueza do povo. Queremos um país justo, que distribua riqueza, porque até aqui o que distribuímos foi desigualdade. Queremos um país desenvolvido e tecnologicamente avançado”, afirmou, sob fortes aplausos.

Bruna também reforçou: “O Brasil é um país lindo, um dos melhores lugares para se viver no mundo. O que nós precisamos aqui é de reparação histórica. Quero falar sobre um salário digno, onde o trabalhador possa, ao final do mês, não só ter comida no prato, mas dignidade.”

Um dos momentos marcantes da noite foi a filiação simbólica de uma dezena de jovens e de Humberto Matos ao PCdoB. Militante, intelectual e profundo conhecedor da realidade internacional, Humberto simboliza, com sua entrada no partido, a renovação de quadros e o fortalecimento do projeto político dos comunistas. Sua presença foi celebrada com entusiasmo, reafirmando que o futuro se constrói também com coragem, convicção e organização coletiva.

Ao longo do debate, ficou evidente que os caminhos da multipolaridade não são lineares nem garantidos. Jabbour ressaltou que os países do Sul Global enfrentam desafios imensos, que vão desde sanções econômicas, guerras híbridas e pressão diplomática, até dificuldades internas de desenvolvimento e coesão social.

As perguntas e intervenções do público enriqueceram ainda mais o debate. Surgiram reflexões sobre o papel do Brasil nesse cenário, sobre os desafios para a industrialização, sobre a necessidade de fortalecer um projeto nacional de desenvolvimento e, sobretudo, sobre como articular essa agenda global com as pautas locais de luta por direitos, emprego, soberania e dignidade.

Ao final, entre aplausos e conversas que se estenderam pelos corredores da Faced, ficou a certeza de que, embora a chuva não tenha vindo, o debate foi quente, intenso e absolutamente necessário. O frio porto-alegrense ficou do lado de fora — lá dentro, o calor da reflexão, da formação coletiva e do compromisso com a transformação social tomou conta.

O ciclo “O Futuro tem Partido” segue sua caminhada, percorrendo o país, mobilizando juventudes, debatendo ideias, formando consciências e construindo pontes entre o presente e o futuro. Porque, como ficou evidente naquela noite, o futuro — definitivamente — tem partido.