Em 1992, assisti a um show do Olodum no vão livre do Masp. A multidão avançava pela Avenida Paulista – que tremia com a batida quase mística da banda. O som dos tambores tocou fundo meu coração de adolescente roqueira. É uma lembrança que guardo com carinho daquela tarde azul e vibrante. Quem viu não esquece!

Pouco depois, em 1994, veio o sucesso AraKetu Bom Demais. “Só sei que o corpo estremece / As pernas desobedecem / Inconscientemente a gente dança / As mãozinhas então embalançam / Quando passa eu vou atrás”.

Seja pela TV, seja pelo rádio, eu já conhecia outros artistas que formaram o que chamamos de axé. Era um ritmo vindo da Bahia que estava no ar desde 1985, após o lançamento do hit Fricote, de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu – um dínamo bem-humorado e com provocações de duplo sentido que ganhou o povo. A “alta burguesia da cidade” e a pequena burguesia torceram o nariz e debocharam, mas o fenômeno chegou forte.

O rótulo “axé music” foi criado por Hagamenon Brito em 1987, numa entrevista para a Folha de S.Paulo. Não foi um elogio. Ao contrário – o jornalista tentou colar no ritmo o emblema de “brega”. Mas o axé assimilou até as dificuldades, transformando-as em ritmo, dança e multidões, numa antropofagia carnavalesca. O rótulo pegou e o estilo prosperou.

De Paul Simon a Michael Jackson

A palavra, afinal, evocava a espiritualidade afro do candomblé – e muito de sua batida remetia a rituais sagrados que tratam do amor, da guerra e da força da natureza. Da Bahia para o Brasil, o axé projetou uma música popular e caliente, que tomou conta dos programas de auditório, das praias do Nordeste, das festas e do carnaval – com alta capacidade de mobilização.

Um momento importante dessa história foi a parceria do Olodum com o norte-americano Paul Simon. No documentário Axé – O Canto do Povo de Um Lugar (Chico Kertész, 2016), vemos Lazinho, membro fundador da banda, relatando a surpresa com a visita do compositor de Mrs. Robinson quando o Olodum ainda era uma banda local.

Eles ganharam o mundo com aquela africanidade que só a Bahia tem. A apresentação do Olodum, em pleno Central Park, em 1991, é emocionante. E não parou aí. Em pleno Pelourinho, no ano de 1996, Michael Jackson gravou com a banda o videoclipe da música They Don’t Care About Us. No esquema montado pelo cineasta Spike Lee, que produziu o vídeo, o resultado é potente.

Quarenta anos depois do lançamento de Fricote – e do axé music –, passada a estridência que capturou o estilo, conseguimos enxergar melhor sua riqueza e sua variedade. De Luiz Caldas ao Olodum, de Daniela Mercury ao É o Tchan! –passando pelo Araketu, pela Banda Eva e pela Timbalada de Carlinhos Brown –, o axé se firmou.

Chiclete com Banana

Há o apelo comercial e sexual, mas também há uma abordagem do cotidiano e, sobretudo, há fortes raízes africanas, bem como uma influência da salsa, do merengue, do reggae de Bob Marley, do pop e, claro, do samba.

Em seu nome, a banda axezeira Chiclete com Banana, outra cria do carnaval baiano, faz referência a um forró de Jackson do Pandeiro. É a música que também se chama Chiclete com Banana – e que diz: “Eu só boto bebop no meu samba quando Tio Sam tocar um tamborim”. Brincar com a mistura de gêneros e de culturas é algo que o axé soube fazer.

Dia desses, lembrei uma música dessa safra para a coluna “Música e Trabalho”, do site do Centro de Memória Sindical. Era Xibom Bombom. A letra encaixou no nosso tema e, em meu breve comentário, disse: “As Meninas tiveram a proeza de levar para o universo do axé um questionamento importante: a desigualdade econômica”.

O axé proclamou a liberdade da mulher, dos negros, dos trans e homossexuais e do povo pobre. Guiou os blocos de carnaval – que, sob sua batida, ganharam outra dimensão. No documentário, Caetano Veloso diz que a música Eu Sou Negão, de Gerônimo Santana, foi um grito de autoafirmação do povo negro. O axé foi mais do que isso. Foi um grito de autoafirmação do povo brasileiro.

(Edição: André Cintra)