Elias Jabbour analisa início do governo Trump e o papel atual da China
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No programa Entrelinhas Vermelhas, apresentado por Guiomar Prates e Inácio Carvalho, o economista Elias Jabbour foi o convidado para discutir os primeiros meses do governo Donald Trump e o contraponto que a China poderia representar no xadrez global. Jabbour, especialista em China e ex-assessor da presidenta do Banco dos BRICS, Dilma Rousseff, apresentou uma análise crítica sobre o impacto das primeiras medidas de Trump e suas implicações na geopolítica mundial.
Assista a íntegra da entrevista:
Trump e o “caos sistêmico”
Questionado sobre os primeiros trinta dias do mandato de Trump, Jabbour afirmou que o ex-presidente norte-americano representa a personificação do que o socólogo Giovanni Arrighi denominou de “caos sistêmico”. Para ele, a estratégia de Trump estava centrada na administração da decadência do império americano, adotando uma política de choque para consolidar a supremacia dos EUA, ainda que por meios turbulentos e imprevisíveis.
“O mundo vive o caos sistêmico, e Trump o aprofunda com medidas sucessivas que desestabilizam a economia internacional. Ele sabe que os EUA estão em declínio e busca administrar essa decadência, espalhando terror e promovendo uma nova onda contra-revolucionária, como fez Reagan nos anos 1980”, destacou Jabbour.
O economista também traçou um paralelo entre Trump e o período pós-Guerra Civil dos EUA, argumentando que o governo do republicano repetia padrões históricos de violência política e exclusão social.
Medidas tarifárias e impacto global
Sobre as primeiras medidas econômicas de Trump, Jabbour destacou a imposição de tarifas sobre produtos chineses como uma estratégia previsível, mas com desdobramentos significativos. “Os chineses já estavam preparados para isso”, afirmou. No entanto, chamou atenção para a questão do aço, que impactava diretamente regiões do Brasil cujos governadores demonstravam apoio a Trump, como Romeu Zema (MG) e Tarcísio de Freitas (SP).
Outro ponto de destaque foi o tratamento dispensado à Europa. Segundo Jabbour, Trump “colocou a Europa debaixo do ônibus”, ao buscar um acordo direto com Vladimir Putin, excluindo os europeus das negociações sobre a Ucrânia. Para ele, essa postura levou a Alemanha a uma “terceira humilhação nacional”, após o Tratado de Versalhes e a Segunda Guerra Mundial, contribuindo para a desindustrialização do país.
A resposta da China
Diante do vácuo de liderança internacional deixado por Trump, a China despontava como uma força estabilizadora na construção de uma nova ordem mundial. “A China está jogando junto com a Europa para estruturar um mundo multipolar”, afirmou Jabbour, enfatizando o papel estratégico do país asiático na busca por equilíbrio e previsibilidade no sistema internacional.
Para o economista, o momento histórico era complexo e desafiador, mas também oferecia oportunidades para novas reflexões sobre o posicionamento do Brasil no tabuleiro global. “Não é um momento divertido, mas é muito interessante para quem quer analisar, fazer teses e sair da caixinha”, concluiu Jabbour.
Com vasta experiência no estudo da economia chinesa, Jabbour destacou a evolução do país asiático e as consequências da política isolacionista norte-americana.
A nova China e o embate geopolítico
Jabbour ressaltou que a China que Trump enfrenta hoje é muito diferente da de 2017, quando foram impostas as primeiras tarifas comerciais. Segundo ele, as pressões externas aceleraram processos que os chineses esperavam concretizar apenas por volta de 2049. “A China assumiu o perfil low profile após as reformas e queria manter isso até 2050. Mas a decadência acelerada do capitalismo financeirizado encurtou a distância entre China e os países centrais, levando a uma resposta mais rápida do que o previsto”, explicou.
Para Jabbour, Trump não é um líder sem estratégia, mas alguém que percebeu esse cenário e iniciou uma guerra tecnológica contra a China. No entanto, ele considera que Washington não previu a capacidade de resposta do gigante asiático. “Os chineses foram obrigados a se reinventar. A China perdeu metade de seus bilionários nos últimos cinco anos porque Xi Jinping usa essa tensão externa para disciplinar a burguesia nacional e fortalecer o Partido Comunista”, afirmou.
Outro ponto crucial citado pelo economista é o fortalecimento institucional chinês. “A China se preparou com bancos de desenvolvimento de longo prazo, conglomerados públicos e um ecossistema tecnológico imenso. Hoje, depende muito menos das importações de tecnologia dos EUA. As medidas de Trump saíram pela culatra”, acrescentou.
A estratégia chinesa e a nova ordem global
Segundo Jabbour, a China responde estrategicamente às ofensivas de Trump, evitando confrontos diretos e utilizando medidas táticas, como a taxação da soja importada dos EUA e restrições na exportação de terras raras. “Os chineses não querem uma guerra, pois seria devastadora para ambos os lados, mas sabem jogar com inteligência para obrigar os EUA a negociar”, disse.
Além disso, ele enfatizou que a política isolacionista dos EUA abre espaço para que a China fortaleça suas relações com o Sul Global. “Nos últimos cinco anos, o PIB do Sul Global superou o do Ocidente coletivo. A China lidera esse processo, criando alternativas para os países em desenvolvimento e fomentando uma nova governança global”, explicou.
A aposta de Trump e o impacto nos EUA
Quando questionado sobre a viabilidade da política de Trump de fazer a “América grande de novo”, Jabbour avaliou que, economicamente, ela só poderia ter efeito prático após um longo período. “A internalização de cadeias produtivas pode até dar certo, mas só começaria a mostrar resultados depois de seis anos. O problema é que ninguém sabe se Trump ou algum republicano estará no poder para colher esses frutos”, ponderou.
Ele também destacou que há um elemento ideológico forte por trás do trumpismo. “O Partido Democrata fala para Nova York e Hollywood, mas Trump fala para o coração da classe operária americana. Há um ressentimento profundo na sociedade dos EUA pela falta de mobilidade social, e ele se aproveita disso para alimentar sua base com um discurso anti-China e contra o establishment”, explicou.
Brasil e a oportunidade perdida
Para Jabbour, o cenário internacional também poderia beneficiar o Brasil, mas falta um projeto de desenvolvimento nacional. “Temos uma oportunidade gigantesca, mas não temos projeto algum. Deixamos de pensar o país como nação há muito tempo”, lamentou.
Ele destacou que a financiarização da economia americana gerou uma crise estrutural nos EUA, tornando o país um terreno fértil para políticos como Trump. “Os americanos não encontraram ainda o ‘Cromwell’ deles, alguém que rompa com esse modelo e reorganize a nação. Enquanto isso, fica uma avenida aberta para figuras populistas e antissistema como Trump”, concluiu.
Jabbour revelou um panorama profundo sobre a ascensão da China e a decadência dos EUA, além das disputas estratégicas que moldam o futuro da ordem global.
Ele abordou os desafios dos Estados Unidos diante do complexo industrial-militar, a visão estratégica de Trump sobre os conflitos na Ucrânia e em Gaza, além da contradição fundamental entre a política expansionista norte-americana e a abordagem colaborativa chinesa no mundo multipolar.
O complexo industrial-militar e a visão de Trump
A discussão evoluiu para uma análise da postura de Donald Trump em relação aos conflitos internacionais. De acordo com Jabbour, Trump enfrenta um desafio interno significativo: lidar com o poderoso complexo industrial-militar dos Estados Unidos. A possibilidade de uma solução para a guerra na Ucrânia estaria atrelada à necessidade estratégica de um realinhamento entre Washington e Moscou, já que o foco central da política externa americana é conter a China.
Sobre a questão de Israel e Gaza, destacou-se o peso do lobby israelense nos Estados Unidos, que influencia diretamente as decisões de democratas e republicanos. O entrevistado enfatizou que a força desse lobby torna complexa qualquer tentativa de alteração significativa na postura americana em relação ao conflito no Oriente Médio.
China: cooperação vs. expansionismo
Outro ponto central foi a diferença fundamental entre os modelos de política externa dos Estados Unidos e da China. Enquanto Washington adota uma postura belicista e intervencionista, a China promove uma diplomacia baseada na cooperação e no respeito mútuo. A entrevista destacou a história civilizatória chinesa, que tem raízes em uma relação milenar entre o ser humano e a natureza, refletindo-se em filosofias como o confucionismo e o taoísmo. Em contraposição, a política externa dos Estados Unidos seria influenciada por uma subjetividade derivada da tradição mediterrânea, marcada por uma visão expansionista e missionária, enraizada em conceitos como o destino manifesto e o excepcionalismo americano.
Jabbour ressaltou que o discurso colaborativo da China se materializa em iniciativas concretas, como o projeto Cinturão e Rota, que promove investimentos em infraestrutura e desenvolvimento em diversos países. Ao contrário da postura americana de imposição política e militar, a China busca se consolidar como uma potência global por meio da integração econômica e da cooperação internacional.
O futuro da relação China-Europa
Por fim, ele abordou a crescente dependência da Europa em relação à China, especialmente diante do declínio da influência americana e dos impactos da guerra na Ucrânia. O presidente francês Emmanuel Macron reconheceu recentemente que “o mundo não vive sem a China”, evidenciando o papel crucial do país asiático na economia global.
A China tem utilizado a França como uma ponte para aprofundar suas relações com a Europa, promovendo acordos de cooperação industrial e fortalecendo parcerias com potências como a Alemanha. O entrevistado destacou que a reindustrialização europeia, após as sanções contra a Rússia, pode ter na China sua única alternativa viável.
Brasil e a integração com a China
No encerramento, discutiu-se a necessidade de uma integração produtiva mais profunda entre Brasil e China. Segundo o economista, o Brasil deveria buscar uma integração produtiva total com a China, indo além do modelo atual baseado em exportação de commodities. A cooperação industrial e tecnológica seria essencial para fortalecer a economia brasileira e ampliar sua inserção no cenário global.
O entrevistado abordou de forma crítica a postura brasileira diante da iniciativa Cinturão e Rota, a possibilidade de uma moeda dos BRICS e os desafios da esquerda nacional em formular uma estratégia de desenvolvimento.
O Brasil e a iniciativa Cinturão e Rota
Questionado sobre a adesão brasileira à iniciativa Cinturão e Rota da China, ele demonstrou ceticismo quanto à possibilidade de uma integração produtiva real entre os dois países. “Eu acho que integração produtiva não, não acredito nisso. Mas acho que dá para avançar mais do que aconteceu”, afirmou. Ele criticou o papel desempenhado pelo Brasil no G20 e nos BRICS, considerando-o insuficiente e abaixo do potencial do país.
Para ele, a principal barreira para um aprofundamento das relações sino-brasileiras é subjetiva, relacionada à ausência de uma esquerda com capacidade de pensar estrategicamente o Brasil. “A esquerda tem que tomar o lugar da elite que falhou em planejar estrategicamente o país”, disse, citando como exemplo o papel assumido pelo Partido Comunista da China na modernização do país asiático.
Uma moeda dos BRICS?
Sobre a possibilidade de uma moeda comum dos BRICS para reduzir a dependência do dólar, o entrevistado expressou ceticismo. “Não acredito. Talvez seja uma das poucas vozes dissonantes em relação a isso”. Ele argumentou que, apesar da queda da participação do dólar nas reservas globais de 85% em 1970 para cerca de 58% atualmente, a moeda americana ainda domina as transações internacionais.
Outro ponto levantado foi a postura da China em relação ao dólar. Segundo ele, “os chineses não querem a desdolarização”, mas sim utilizar o próprio sistema dolarizado a seu favor. A China, por exemplo, compra dólares a taxas inferiores às do Federal Reserve, o que lhe permite abastecer mercados emergentes sem recorrer ao FMI. Esse mecanismo poderia dar à China uma influência financeira global ainda maior sem a necessidade de uma ruptura total com o sistema atual.
Sistemas locais de pagamento e a moeda digital dos BRICS
Apesar do ceticismo sobre a desdolarização, o entrevistado apontou um caminho possível para a autonomia financeira dos BRICS: a criação de sistemas locais de pagamento e moedas digitais. Ele destacou como a China e a Rússia já avançaram na construção de infraestruturas financeiras alternativas ao sistema SWIFT, que centraliza as transações bancárias globais.
“A moeda digital dos BRICS pode acontecer”, disse, sugerindo que essa alternativa poderia ser acelerada durante a presidência brasileira do bloco em 2025. No entanto, ele ponderou que a falta de visão estratégica no Brasil pode dificultar esse avanço.
O futuro das relações Brasil-China
Ao longo da entrevista, ficou claro que a relação do Brasil com a China e sua inserção nos BRICS dependem não apenas de fatores econômicos, mas também de uma mudança na postura da elite e da esquerda brasileira. Sem uma estratégia nacional de desenvolvimento, o Brasil corre o risco de permanecer numa relação desigual com a China, baseada na exportação de commodities e na dependência de produtos industrializados do exterior.
O programa Entrelinhas Vermelhas trouxe uma reflexão sobre a necessidade de um planejamento de longo prazo para que o Brasil possa se beneficiar plenamente das transformações geopolíticas em curso. Com o BRICS se fortalecendo e novas possibilidades emergindo no cenário global, a pergunta que permanece é se o Brasil estará preparado para assumir um papel protagonista ou se continuará à margem das decisões estratégicas mundiais.
Um dos pontos centrais da entrevista foi a discussão sobre a criação de uma nova moeda para os BRICS, proposta que tem sido alvo de especulações. Segundo o entrevistado, essa mudança não ocorrerá com a rapidez que alguns imaginam. Ele argumenta que, apesar da queda da participação do dólar nas reservas internacionais, a moeda americana ainda é amplamente dominante nas transações globais. Além disso, a China, diferentemente do que alguns pensam, não tem pressa em promover uma desdolarização, pois tem conseguido utilizar o próprio sistema financeiro internacional para avançar seus interesses. A possibilidade mais concreta, segundo o entrevistado, seria o avanço de sistemas locais de pagamento e o fortalecimento de uma moeda digital dos BRICS.
Jabbour também abordou as consequências da política isolacionista dos Estados Unidos, particularmente sob a liderança de Donald Trump, que retirou o país de diversos organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Acordo de Paris. Para o entrevistado, essa postura fragilizou a governança global e demandou a criação de novas formas de articulação internacional. Ele criticou a empolgação da esquerda brasileira com fóruns como o G20 e a COP, afirmando que esses espaços perderam relevância diante das novas configurações políticas e econômicas globais.
Questionado sobre o papel dos BRICS na nova governança mundial, ele destacou que o bloco é o polo mais dinâmico da economia global e que não se trata de um movimento de “desglobalização”, mas sim de uma “globalização paralela” liderada pela China. A Iniciativa do Cinturão e Rota foi apontada como um exemplo claro dessa nova forma de integração, indo além da infraestrutura e abrangendo cooperação industrial, científica e tecnológica.
Por fim, levantou uma reflexão sobre o papel da China na nova governança global. O entrevistado evitou o termo “domínio”, mas reconheceu que a China está assumindo um protagonismo histórico, algo que já ocorreu em outros momentos. No entanto, ele acredita que essa nova ordem será mais humanística e tolerante em comparação ao modelo hegemônico imposto pelos Estados Unidos nas últimas décadas.