Persistem dúvidas sobre impacto do acordo Mercosul-União Europeia sobre a indústria
Brasil dispõem de avançada e diversificada indústria farmacêutica que o governo tenta proteger dos impactos do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia
O acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, anunciado em Montevidéu durante a 65ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, gerou entusiasmo e apreensão entre especialistas e setores econômicos. O pacto, negociado por mais de duas décadas, promete integrar economicamente dois blocos que juntos representam 17% do PIB global. No entanto, as opiniões sobre os seus efeitos divergem, especialmente em relação aos impactos na indústria nacional.
Enquanto setores agrícolas e exportadores celebram a possibilidade de ampliar mercados, preocupações com a desindustrialização do país são levantadas por economistas atentos aos desdobramentos de longo prazo.
O valor agregado manufatureiro (VAM) da UE é oito vezes maior que o do Mercosul, refletindo uma disparidade estrutural. Além disso, a eliminação tarifária para produtos industriais europeus pode prejudicar segmentos menos competitivos da indústria brasileira, ampliando o “gap competitivo” entre os blocos. Mesmo com salvaguardas para proteger setores específicos, há receios de que a liberalização acelerada prejudique a capacidade de investimento e inovação da indústria nacional.
Os alertas: riscos de desindustrialização e dependência
Economistas como Wellington Duarte (UFRN) e Marcelo Fernandes (UFRRJ) manifestam em entrevista preocupações quanto aos impactos negativos no setor industrial. Fernandes compara os termos do acordo, que ele analisou em 2020, a um retorno à “era das caravelas”, com o Brasil potencialmente se especializando em exportações de bens primários enquanto importa manufaturas.
Em 2018, por exemplo, 94,8% das importações brasileiras da UE eram de produtos manufaturados, enquanto 43,4% das exportações brasileiras para a Europa eram de produtos básicos. Uma assimetria que preocupa setores industriais, como os de máquinas, produtos farmacêuticos e químicos, que podem enfrentar quedas na produção.
Enquanto a União Europeia deve cortar 100% das tarifas sobre produtos industriais do Mercosul em até dez anos, as tarifas europeias já são reduzidas, minimizando os benefícios para os exportadores sul-americanos. Setores como automotivo, químico e farmacêutico estão entre os mais vulneráveis, enfrentando a concorrência direta de economias europeias altamente competitivas.
Ele também aponta para o impacto desigual entre os países do bloco: “O acordo prejudicaria menos o Paraguai, que já exporta matérias-primas, e o Uruguai, focado em serviços financeiros. Brasil e Argentina sofreriam os maiores prejuízos devido à erosão de sua base industrial.”
Duarte alerta que os ganhos não serão uniformes. “Se alguém ganha, alguém perde ou, no cenário mais otimista, alguém ganhará menos. O impacto será maior em setores como farmacêutico, máquinas e equipamentos elétricos.”
Ele enfatiza a necessidade de um projeto nacional de desenvolvimento para fortalecer a indústria brasileira. “O acordo é positivo, mas não resolve o problema da desindustrialização. Precisamos diversificar nossas exportações industriais para além desse tratado.”
Duarte destaca que o sucesso do Brasil depende da condução estratégica do governo nos marcos do acordo, para mitigar potenciais perdas industriais e maximizar oportunidades.
Há economistas, no entanto, que consideram que a importação de máquinas industriais mais modernas pode aumentar a produtividade em outros setores, ainda que algumas indústrias enfrentem perdas no curto prazo.
A visão otimista: ampliação de mercados e competitividade
Organizações como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) celebraram o acordo, destacando oportunidades de diversificação de exportações e integração às cadeias globais de valor. Para o presidente da CNI, Ricardo Alban, a medida amplia o acesso preferencial brasileiro ao mercado global de 8% para 37%, impulsionando a competitividade do país.
O vice-presidente Geraldo Alckmin descreveu o acordo como “histórico e estratégico”, ressaltando estudos que preveem crescimento de 6,7% nas exportações brasileiras para a União Europeia e de 26,6% na indústria de transformação. Ainda assim, ele reconhece que o pacto requer concessões e adaptação.
Apesar do entusiasmo de setores como o agronegócio e da projeção de aumento de 0,46% ao ano no PIB, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alerta para possíveis prejuízos a segmentos industriais, como metalurgia e têxteis. Por outro lado, setores como a indústria calçadista e de carnes podem experimentar ganhos significativos.
Mudanças no acordo e o potencial de mitigar impactos
Muito da análise é baseada em termos que sofreram mudanças nas negociações durante o governo Lula. O novo texto, na visão do governo brasileiro, é mais flexível e favorável para empresas brasileiras.
Os compromissos específicos do Brasil levam em conta o interesse em preservar espaço para política pública nas áreas de desenvolvimento industrial, saúde pública, tecnologia e inovação, pequenas e médias empresas e pequenos produtores rurais”.
Entre os novos temas estão os carros elétricos, setor que preocupa os países do Mercosul por eventuais aumentos expressivos do fluxo de exportações da UE para o bloco. No capítulo sobre salvaguardas bilaterais, foi estabelecido que empresas domésticas, de ambos os blocos, estarão protegidas de “surtos de importação decorrentes da liberalização comercial. O capítulo passa a contar com um mecanismo específico para o setor automotivo, com vistas a preservar e promover investimentos”.
Também foi reforçado o capítulo sobre solução de controvérsias, que, segundo o texto divulgado, “define mecanismos de resolução de disputas, com consultas iniciais e possibilidade de arbitragem, assegurando o cumprimento das obrigações. O capítulo passa a contar com seção dedicada à preservação do equilíbrio do acordo, independentemente de violação aos temos acordados”.
Enquanto os setores produtivos aguardam os desdobramentos legislativos e jurídicos para a implementação do acordo, a questão central permanece: como equilibrar os ganhos em exportações com a preservação e o fortalecimento da indústria nacional? A resposta determinará os verdadeiros impactos do pacto na economia brasileira, que tem sofrido com a desindustrialização desde a abertura desenfreada do mercado global nos anos 1990.
(por Cezar Xavier)