De mãos dadas com a truculência, impunidade perpetua arbitrariedade da polícia
Historicamente, a Polícia Militar de São Paulo é violenta. Mas, entre altos e baixos, teve sua truculência um pouco mais contida e controlada durante algumas gestões. Nos últimos anos, no entanto, sua atuação desandou e o estado viu explodir o número de casos de mortes, agressões e arbitrariedades de toda ordem. Lado a lado com esse quadro, a impunidade e a política do “não estou nem aí”, de Tarcísio de Freitas, vai deixando corpos, traumas e dor pelo caminho.
Conforme dados da própria Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, de 2022 a 2024, a letalidade policial no estado mais que dobrou, passando de 331 mortes para 676. E nos primeiros 11 meses deste ano, a Ouvidoria da Polícia detectou uma alta de 40% no número de denúncias de agressão cometidas por PMs, passando de 121 para 170. Também cresceram as queixas por abuso de autoridade (de 270 para 282) e por abordagem abusiva (de 63 para 74).
Para piorar esse cenário, dissertação feita pela advogada Débora Nachmanowicz, mestre em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela USP, mostra que entre 2015 e 2020, foram identificados mais de 1,2 mil inquéritos sobre mortes causadas por policiais. Desses, apenas 122 foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça, o que corresponde a cerca de 10%.
Além disso, menos da metade dos casos denunciados, 60, foi a júri após decisão do juiz — o que seria obrigatório por lei em casos de homicídio. E, depois do julgamento, em apenas um terço, ou 20 casos, houve condenação, o que significa menos de 2% dos inquéritos iniciais.
“O policial que foi alvo de inquérito é solto e volta para o batalhão, volta para a rua. Mas se houvesse um controle maior sobre esses casos, para que fossem julgados de uma maneira mais rígida — assim como, por exemplo, acontece com todos os acusados de roubo e tráfico —, isso poderia alterar a maneira como a polícia age. Haveria sim uma chance de reduzir a violência policial”, avalia a autora da dissertação, em entrevista à Agência Brasil.
A ruína como excelência
Nada disso, no entanto, parece incomodar o governador Tarcísio de Freitas. Ao fazer um balanço de seu governo nesta quarta-feira (18), ele declarou: “Nós temos uma excelente Polícia Militar, uma excelente Polícia Civil”.
Tal excelência sabidamente não existe. Obviamente, há os agentes públicos que procuram cumprir seu papel da melhor maneira possível. Mas, também é óbvio que essas instituições (e não algumas “maçãs podres”) funcionam, desde sua gênese, como um instrumento de controle social a mando das elites.
Em diferentes épocas, esse aparato elegeu determinados alvos a serem perseguidos para manter “a lei e a ordem”: escravos rebeldes, capoeiras, seguidores de religiões de matriz africana, prostitutas, pessoas em situação de rua e drogadição, comunistas, anarquistas, sindicalistas etc.
Em comum à esmagadora maioria desses alvos está o fato de serem negros, pobres ou estarem, de alguma forma, à margem daquilo que a sociedade se acostumou a classificar como “cidadão de bem”.
As situações cada vez mais absurdas e violentas promovidas pela polícia deixam claro que essa visão segue viva no imaginário da extrema direita e dos próprios policiais. Não à toa, um se sentiu à vontade para jogar uma pessoa de uma ponte; outro acha natural agredir fisicamente uma mulher idosa, por exemplo, enquanto tantos outros colocam em prática, de maneira recorrente, uma pena de morte inexistente na legislação brasileira, sob o manto da “legítima defesa”.
Tarcísio — que para alguns é um governador diferenciado do “bolsonarismo clássico” e consegue se portar de maneira menos grotesca do que seus pares — segue esse mesmo caminho e compõe aquela parcela dos gestores e da sociedade que insiste, há décadas, num tipo de “política de segurança pública” que nunca resolveu nada, mas que rende votos e defesas acaloradas da classe média, da elite e de parte dos pobres abandonados pelo Estado. Se o preço a pagar por isso for uma pilha de corpos, o governador já disse que “não está nem aí”.
Há poucos dias, após o casos estarrecedores do rapaz jogado de uma ponte por um policial e de outro morto com 11 tiros pelas costas por furtar sabão, Tarcísio veio a público “admitir” que errara em seu juízo sobre o uso das câmeras por policiais. Teve jornalista aplaudindo o falso reconhecimento público que nada mais foi do que uma forma de baixar a fervura em torno dele e de seu secretário para que tudo continuasse como estava.
Ações imediatas
A resolução dos problemas da segurança pública — de maneira geral e em São Paulo, em particular — carecem de mudanças estruturais nas instituições, na formação dos agentes e também na Justiça.
Mas, há alterações de curto e médio prazo que já poderiam ser tomadas para, ao menos, acabar com a atual matança por policiais. Os resultados alcançados pelo uso das câmeras corporais, por exemplo, mostram que esse é um instrumento fundamental para salvar vidas e resguardar, inclusive, os agentes que atuam dentro da lei.
Levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que entre 2019 e 2022, houve uma queda de 63% na letalidade policial, índice próximo ao apontado pela Fundação Getúlio Vargas, que identificou uma redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenção policial e queda de 63% nas lesões corporais causadas por policiais militares.
Outro estudo, do Instituto Sou da Paz, mostrou, ainda, que os casos de mortes de jovens entre 15 e 24 anos caíram 46% após a implementação dos equipamentos. Como colocado antes, a punição aos que cometem assassinatos e arbitrariedades também é essencial.
Diante dos mais recentes fatos, o debate voltou à tona e levou instituições e estudiosos a clamarem por maior atenção do governo para frear essa situação. “É urgente que as autoridades reconheçam a gravidade desses comportamentos, que não são esporádicos, e promovam ações efetivas para a redução da letalidade policial e para a formação de uma polícia que atue nos estritos marcos de uma sociedade democrática”, disse, em nota, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.
Já o Sindicato dos Advogados e das Advogadas de São Paulo (Sasp) abriu uma representação no Ministério Público contra o governador para que se apure a negligência e a omissão na política de segurança pública, assim como a manutenção do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite no cargo e se existe incentivo à violência policial.
Para Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, em entrevista ao site Deutsche Welle, “a violência policial é sistêmica, não é um fato isolado. Mas quando as lideranças políticas não assumem um compromisso com o controle do uso da força, com uma política pública de segurança que preserve direitos, aumenta o risco dessa violência se multiplicar – é o que estamos vendo agora”.
Ela completa dizendo que hoje “não temos uma posição da liderança política no estado de São Paulo, seja do governo ou da secretaria de Segurança Pública, comprometida com o uso responsável da força policial, que é um atributo das polícias em todo o mundo”.