Arrivista moçambicano pró-EUA recusa-se a aceitar derrota e tenta incendiar o país
Moçambique, país africano que é o terceiro maior de língua portuguesa do mundo, segue conflagrado desde que a Comissão Central Eleitoral do país anunciou a vitória nas eleições de outubro do candidato à presidência da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o partido que encabeçou a guerra de libertação da dominação colonial portuguesa na década de 1970, e desde então tem governado o país. Daniel Chapo foi eleito com 70,2% dos votos (4.912.762).
O resultado foi rechaçado pelo ex-deputado e dissidente da Renamo, Venâncio Mondlane, que ficou em segundo, com 20,3% (1.412.517 votos), convocou protestos e pediu a anulação da eleição, alegando “fraude”. Os outros dois candidatos, Ossufo Momade (Renamo) e Lutero Simango (MDM), tiveram respectivamente 5,8% (403.591 votos) e 3,2% (223.066 votos).
A Renamo é a oposição “tradicional” em Moçambique, desde os tempos em que foi criada sob tutela dos supremacistas brancos na África do Sul e na então Rodésia, para minar o governo revolucionário que prestava apoio ao Congresso Nacional Africano de Mandela e sua luta contra o apartheid.
O comparecimento às urnas foi de 43,5%, abaixo dos 52,0 % da eleição passada. Conforme a lei moçambicana, o processo precisa, ainda, ser proclamado pelo Conselho Constitucional, que ali exerce funções análogas ao nosso TSE. Moçambique enfrenta uma insurgência “islâmica” no norte do país, justo na região onde foram descobertos grandes campos de gás, o que causou o deslocamento forçado de 1 milhão de pessoas.
O anúncio foi formalizado pela CNE em cumprimento à legislação eleitoral, que determina o prazo de quinze dias para a divulgação do resultado.
Segundo ongs ligadas à oposição, nos protestos – barricadas nas ruas e depredações – houve mais de 30 mortos e dezenas de feridos, além de presos. O correspondente da Voice of America, Charles Mangwiro, denunciou o que chama de “violência policial”.
Observadores da União Europeia e do Instituto Republicano Internacional, ligado ao Partido Republicano dos EUA, alegaram múltiplas irregularidades na votação: atrasos no desembolso de fundos eleitorais aos partidos da oposição, obstrução dos observadores eleitorais e um número invulgarmente elevado de eleitores registrados em áreas que se espera que votem na Frelimo.
Observadores da União Africana, da Comunidade dos Países da África Austral e de outros organismos internacionais consideraram o pleito normal, embora com imperfeições.
Após ter sua prisão decretada pela justiça por açular distúrbios e ter suas contas bancárias congeladas, Mondlane evadiu-se para a vizinha África do Sul, de onde, pelas redes sociais, segue chamando aos protestos pelo que diz ser a “verdade eleitoral”.
O presidente cessante, Filipe Nyusi, convocou todos os quatro candidatos para uma reunião, prometendo, até o último dia do mandato, usar toda a energia dele “para pacificar Moçambique”. “Precisamos de todos nós e de cada um de vocês (…). Moçambicanos têm de estar juntos para resolvermos os problemas”, disse Nyusi, cujo último mandato termina em janeiro, numa mensagem à nação. A reunião será nesta terça-feira (26).
Mondlane, Momade e Simango estão pedindo um “terceiro turno” – isto é, a anulação da eleição e realização de outra. O que virou moda quando o resultado da eleição não agrada a Washington ou Bruxelas. Como dizia Kissinger, sob Nixon, ao tramar o golpe no Chile: tudo culpa da “irresponsabilidade” dos eleitores chilenos.
Apesar das acusações de Mondlane, na comparação com a eleição anterior, de 2019, não existe uma discrepância inexplicável no resultado. Naquele ano, a Frelimo teve 71,2% dos votos e conquistou 184 mandatos à Assembleia da República. A Renamo elegeu então 60 deputados (22,2%), seguida do MDM, com seis deputados (4,2%). O Partido Otimista não teve representação parlamentar.
Nas eleições deste ano, segundo o presidente da CNE, o bispo anglicano Carlos Matsinhe, a apuração eleitoral foi feita por consenso em 87% dos 154 distritos.
Segundo a mídia imperial, Mondlane é um “líder carismático” e sua mensagem teria tido ressonância entre os jovens.
Como não faltam problemas a Moçambique, que é um dos países mais pobres do planeta e onde não tem sido fácil o processo de superação da herança maldita colonial, antes que alguém se entusiasme com esse novo messias, e já que as bandeiras da “eleição fraudada” têm sido ostensivamente usadas pelo reacionarismo no mundo inteiro, não custa nada levantar a ficha corrida do elemento, como se diz na gíria policial.
Ainda mais quando, aqui em nossa América Latina, andaram surgindo novidades igualmente “carismáticas”, como Javier Milei e, em São Paulo, Pablo Marçal.
E quando ele, coincidentemente, manifestou sua afinidade com alguns dos mais notórios fascistas à escala global.
Segundo registrou o articulista norte-americano David Brown, “Mondlane também prestou homenagem ao ex-presidente fascista brasileiro Jair Bolsonaro [“homem de Deus” e “esperança do Brasil] e elogiou o recém reeleito presidente Donald Trump por proteger os valores morais da América”.
Coincidentemente, esclareceu a BBC, Mondlane é, também, “líder evangélico”.
Em bem se procurando, as raízes da ascensão de Mondlane vêm à tona. Em 2013, no governo Obama, ele participou Programa de Liderança de Visitantes Internacionais do Departamento de Estado dos EUA, onde figuras locais são indicadas pelas embaixadas dos EUA para “maior networking e desenvolvimento”, e naquele ano concorreu a prefeito da capital moçambicana, Maputo, pelo Movimento para a Democracia em Moçambique (MDM).
O que lembra aquele célebre cursinho de verão de 2010 do então promissor Alexei Navalny, do qual saiu “líder anticorrupção” na Rússia. Há relatos também de que aquele ‘presidente’ que Trump nomeou para a Venezuela, Juan Guaidó, também andou frequentando cursos de “especialização” nos States.
Em tempo: Mondlane também foi comentarista de programas televisivos e radiofônicos e figurinha carimbada nos noticiários da Voice of America, Deutsche Welle e Radio France Internacional enfocando a África.
Em 2018, Mondlane ingressou na Renamo, o principal partido de oposição, do qual saiu em 2024 ao não conseguir a vaga para disputar a presidência, indo para uma legenda de aluguel, o Partido Otimista do Desenvolvimento Moçambicano (Podemos), cujo nome parece inspirado naquele famoso mote de Obama, “Yes we can”.
Durante a campanha deste ano, Mondlane viajou pela Europa, encontrando-se com o partido de extrema-direita e cruelmente anti-imigrante Chega em Portugal. O Chega é o herdeiro político da ditadura de Salazar, que travou a brutal guerra colonial contra a luta de independência, na qual 50 mil moçambicanos foram mortos entre 1964 e 1974.
Sobre os protestos que convocou, Mondlane disse à AFP sentir que “há uma atmosfera revolucionária, uma atmosfera que mostra que estamos à beira de uma transição histórica e política única no país”, enquanto disfarçava sobre seus objetivos. “Nunca dissemos que queríamos tentar um golpe de Estado.”
Observadores registraram que o governo de Moçambique andou saindo fora do script preferido de Washington ao se recusar a endossar as sanções contra a Rússia na guerra da Otan por procuração na Ucrânia, e por, na ONU, apoiar resoluções pelo cessar-fogo em Gaza para deter o genocídio perpetrado por Israel.
Quanto a protestos na África, estão na ordem do dia, como mostrado nos levantes no Sahel contra o neocolonialismo francês, súdito do intervencionismo ianque. E motivos é que não faltam. No caso de Moçambique, o que os explicaria, para Fidel Terenciano, do Instituto para o Desenvolvimento Econômico e Social (Ides), é que “as pessoas estavam à procura de uma válvula de escape” para contestar “esses apertos que sentem em relação à vida.”
Registre-se que, nesta eleição, a oposição “tradicional” em Moçambique, a Renamo, acabou em terceiro. Se alguém sentiu certa ironia na qualificação da Renamo, só para lembrar, ela é uma organização colaboracionista criada sob tutela dos regimes racistas da África do Sul e da Rodésia para minar a libertação de Moçambique. Depois a Rodésia virou o Zimbabwe emancipado.
Oficialmente a guerra civil terminou em 1992 com o acordo de Roma, intermediado pela Igreja Católica, cuja implementação não foi simples. Afonso Dhlakama, líder da Renamo, e Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique, assinaram o acordo. Na primeira eleição, Chissano venceu, a Renamo chiou, mas acabou aceitando o resultado.
Desde então, a cada eleição a Renamo contestou, várias vezes se recusou a reconhecer o resultado e a concluir seu desarmamento como acordado. Em certo momento houve a volta à guerra civil, mas a Renamo acabou tendo de recuar. Em 2019 pela primeira vez houve uma eleição que não foi contestada. O que, como se vê, não durou muito.
Os protestos, para além da demagogia de Mondlane, são reveladores da situação de pobreza e subdesenvolvimento de Moçambique que, depois da libertação do jugo colonial, ainda teve de passar por 16 anos de guerra civil, ao custo de 1 milhão de mortos, em grande parte de fome.
Após a queda da União Soviética e fim do apoio ao seu desenvolvimento, o governo de Moçambique, durante a avalanche neoliberal sobre o planeta, se viu, como outros tantos, forçado ao receituário do FMI.
Isso, mais a herança colonial e o fardo da guerra civil, faz com que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Moçambique seja o 11º pior do mundo dentre 193 países.
O PIB per capita (a riqueza produzida no país divida pelo número de habitantes) é o 6º pior do mundo, segundo o Banco Mundial. Somente 31% da população têm acesso à eletricidade. No campo, esse percentual cai para 3,8%.
A expectativa de vida é de apenas 58,3 anos, quase 20 a menos do que o Brasil. Moçambique é também um país muito jovem, com uma idade média de 17,3 anos.
Entre 2000 e 2015, o crescimento da economia foi em média de 7%. Entre 2016 e 2023, a média baixou para quase 3%. No pós-pandemia, foi de 4,36% em 2022 e de 5% em 2023.
Segundo declarações do vice-ministro da Economia e Finanças moçambicano, Amílcar Tivane, a pobreza atinge 45% da população de 30 milhões, quando há 15 anos era de quase 70%: “então registramos uma redução significativa”.
Ele advertiu que, para atingir os Objetivos do Desenvolvimento da ONU para 2030, esse percentual precisa cair pela metade, para “24%”.
O país também tem sido penalizado por frequentes ciclones e secas intensificadas, que são atribuídos às mudanças climáticas, que afetam desproporcionalmente as massas rurais.
Novos problemas se avolumaram, em especial a irrupção de uma milícia “islâmica” no norte do país, em Cabo Delgado, justo na região onde foram descobertos campos de gás expressivos. Uma onda de ataques, inclusive com decapitações ao estilo Estado Islâmico, provocou o deslocamento forçado de 1 milhão de pessoas. A Total francesa, que obteve a exploração do gás, adiou investimentos por conta disso.
Em entrevista à Agência Brasil, o embaixador brasileiro em Moçambique, Ademar Seabra, explicou que o resultado da eleição ainda precisa ser proclamado pelo Conselho Constitucional do país, mas não há um prazo para que isso aconteça.
Ele observou que, em contraste com o processo eleitoral brasileiro, com urnas eletrônicas e divulgação imediata dos resultados, “o processo eleitoral em Moçambique é lento”.
Imediatamente após as eleições em si no dia 9, começou a contagem de votos, manualmente, urna a urna, e produzida uma totalização. Três dias depois, os distritos começam a divulgar os seus resultados parciais. Esses resultados foram submetidos às províncias e centralizados pela Comissão Nacional de Eleições, que os totalizou e divulgou.
“Foi esse anúncio provisório, que deflagrou justamente essa contestação”. Por causa das contestações, acrescentou o embaixador, “ele ainda será apreciado pelo Conselho Constitucional, que mal comparando faz o papel do nosso TSE [Tribunal Superior Eleitoral] no Brasil”.
“Mas é um processo que vai e volta, considerações que vêm de diversas partes, tudo tem que ser justificado, e esse processo está em curso”, disse o embaixador brasileiro.
Seabra disse que, “ao contrário do Brasil, onde colocamos multidões nas ruas nas manifestações, em Moçambique é muito mais pulverizado, grupos de algumas centenas, quando muito, uns poucos milhares e em alguns casos há confronto”, especialmente quando instituições-chave do Estado podem ser alvo do protesto direto.
Ele observou, porém, que isso não quer dizer que “seja uma sociedade crispada ou com clivagens de antagonismos, de inimigos, de adversários a serem eliminados. Não, não há. Então há uma predisposição positiva para que uma solução pacífica prevaleça, embora vários cenários sejam possíveis”.
A mensagem que tem ouvido, tanto da oposição quanto do governo, ele concluiu, é de buscar “conciliações possíveis e caminhos de diálogo” – embora haja sido aberta uma “caixa de pandora”.
Fonte: Papiro