Declaração do G20 defende paz, democracia e aliança contra a fome
Encerrou-se nesta terça-feira (19) no Rio de Janeiro a Cúpula do G20, que teve o presidente Lula como anfitrião e fica marcada pela capacidade de construir consensos em uma época de mudanças tectônicas no plano internacional e conflitos agudos, bem como de afirmação do papel do Brasil nessas transformações e na defesa da multilateralidade, soberania, democracia, paz e combate às desigualdades. O que tem como síntese a Declaração dos Líderes adotada na véspera.
A 19ª Cúpula do G20 foi realizada sob o lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”. A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, principal proposta do Brasil para sua presidência do grupo, foi aclamada e conta com a adesão de pelo menos 82 países, 24 organizações financeiras, nove financiadores e 31 instituições de filantropia.
Proposta ainda mais consequente diante dos retrocessos desde a pandemia de COVID-19, com o número de pessoas que enfrentam a fome “aumentando para aproximadamente 733 milhões de pessoas em 2023, sendo as crianças e as mulheres as mais afetadas”.
Declaração do G20, sob consenso, saudou “todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiam uma paz abrangente, justa e duradoura, defendendo todos os Propósitos e Princípios da Carta das Nações Unidas para a promoção de relações pacíficas, amigáveis e de boa vizinhança entre as nações”, em referência à Ucrânia.
O documento expressou “profunda preocupação” com a “situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e a escalada no Líbano”, enfatizando “a necessidade urgente de expandir o fluxo de assistência humanitária e reforçar a proteção de civis e exigir a remoção de todas as barreiras à prestação de assistência humanitária em escala”.
“Afirmando o direito palestino à autodeterminação, reiteramos nosso compromisso inabalável com a visão da solução de dois Estados, onde Israel e um Estado palestino vivam lado a lado, em paz, dentro de fronteiras seguras e reconhecidas, consistentes com o direito internacional e resoluções relevantes da ONU. Estamos unidos em apoio a um cessar-fogo abrangente em Gaza”.
A Declaração reivindicou também uma reforma da governança global, para que os países emergentes tenham a devida representação no Conselho de Segurança da ONU, que está em débito com a África, Ásia e América Latina, e no FMI e Banco Mundial, bem como a modernização da Organização Mundial do Comércio.
O documento chama a avançar nas medidas contra a crise ambiental – ponto especialmente importante na medida em que Trump, que no primeiro mandato retirou os EUA do acordo do Clima de Paris e fez do cínico bordão “Drill, baby, drill” (lema de apoio à antiecológica extração de gás via fracking) um dos seus motes prediletos, estará de volta em janeiro à Casa Branca. Além da própria urgência da questão e de seus desafios gigantescos, e no quadro dos contratempos na COP 29, no Azerbaijão.
A cúpula do G20 também endossou a tributação da riqueza dos “ultrarricos” e reformas fiscais progressivas que ajudem a financiar as metas da agenda 2030 da ONU e o combate à desigualdade. Menos de um quinto dessas metas de desenvolvimento sustentável, advertiu o documento, estão a bom caminho. Uma exceção é a China, que já completou todas as metas por antecipação, como informou o presidente Xi Jinping.
A Declaração também reconhece “a importância de criar empregos de qualidade e promover o trabalho digno para todos a fim de alcançar a inclusão social”, assim como defende melhores condições de trabalho, o diálogo social, a promoção da negociação coletiva e pede a erradicação do trabalho forçado e de todas as formas do trabalho infantil.
Em relação às mulheres, o G20 saudou a reunião inaugural do Grupo de Trabalho de Empoderamento das Mulheres do G20 e reafirmou o total compromisso “com a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas” e o combate a toda a forma de discriminação.
A cúpula também se pronunciou a favor dos direitos dos imigrantes, do fortalecimento da OMS e da missão de alavancar a Inteligência Artificial para o bem e para todos, de maneira responsável, inclusiva e centrada no ser humano, com proteção dos direitos humanos, transparência, regulamentação, segurança, supervisão humana apropriada, ética, privacidade, e proteção e governança de dados.
Ainda no último dia, Lula conclamou os membros desenvolvidos do G20, a anteciparem suas metas de neutralidade climática de 2050 para 2040 ou até 2045. A neutralidade climática consiste em um país conseguir compensar toda a missão de gases poluentes com medidas como sequestro de carbono.
“Lançamos um roteiro para tornar os bancos multilaterais de desenvolvimento melhores, maiores e mais eficazes e demos voz aos países africanos na discussão sobre o endividamento”, disse ainda Lula, em seu balanço sobre a presidência brasileira do G-20 – além, claro, da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
Esta, de certa forma um desdobramento daquela resposta célebre de Lula a W. Bush, em meio à invasão norte-americana do Iraque, quando lhe disse “nossa guerra é contra a fome”.
“Criamos uma Coalizão para a Produção Local e Regional de Vacinas e Medicamentos e decidimos expandir o financiamento para infraestruturas de água e saneamento”, acrescentou Lula.
“Colocamos a mudança do clima na agenda dos Ministérios de Finanças e Bancos Centrais e aprovamos o primeiro documento multilateral sobre bioeconomia”, destacou, entre os principais avanços.
O presidente Lula passou o comando ao presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, que passa a dirigir o G20 ao longo de um ano e cujo país será sede da próxima cimeira. Também foi a primeira cúpula com a participação da União Africana, como decidido em Nova Delhi.
“Esta não é uma transmissão de presidência comum. É a expressão concreta dos vínculos históricos, econômicos, sociais e culturais que unem a América Latina e a África”, ressaltou Lula.
Lula desejou a Ramaphosa todo sucesso na liderança do G20. “A África do Sul poderá contar com o Brasil para exercer uma presidência que vá além do que pudemos realizar.”
O presidente brasileiro salientou que esse último ciclo de presidências, sucessivamente Indonésia, Índia, Brasil e agora, África do Sul, está permitindo fortalecer os pontos de vista dos países emergentes dentro do G20.
Ao presidente sul-africano, Lula desejou boa sorte e, coroando a despedida, repetiu a frase icônica de Mandela: “é fácil demolir e destruir; os heróis são aqueles que constroem”.
“Vamos construir o mundo justo e sustentável”, concluiu Lula.
Milei, cujo comparecimento ao G20 vinha sendo noticiado como uma espécie de embaixador informal de Trump na cúpula, acabou enquadrado pelo clima geral, aderiu à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza – sob seu governo, esta cresceu para mais da metade da população – e assinou o acordo com o Brasil de fornecimento de gás do campo de Vaca Muerta.
Outra cena imperdível foi o encontro de Milei com o presidente Xi Jinping, da China – depois das declarações de campanha de que “não faria negócios com comunistas”. Que é o país que segue estendendo sua mão fraterna à Argentina mesmo sob a presidência do autonomeado “anarcocapitalista”.
Para fazer juz à fama, Milei ameaçou retirar a Argentina da Agenda 2030 da ONU, alegando que atenta “contra as liberdades individuais”. Há uma semana, ele retirou a delegação argentina da COP 29.
A cúpula do Rio de Janeiro também marca a melancólica despedida de Biden da cena internacional, depois de décadas como um dos mais destacados operativos do Estado Profundo norte-americano e sua sanha de dominação, parte no senado, parte no governo Obama e no seu próprio e único mandato.
Mas Biden fez questão de, até o último momento, prestar serviço. O mais escorraçado presidente norte-americano em décadas escolheu a véspera da cúpula do G20 para dar sinal verde ao regime de Kiev – aliás, instaurado com sua ajuda em 2014, era ele que ficava enrolando o então presidente Yanokovich enquanto a CIA acelerava o golpe – para atacar território internacionalmente reconhecido da Rússia com mísseis fornecidos pelos EUA e que só podem ser operados pela própria Otan.
O que trouxe a situação na Ucrânia à tensão extrema. Vaidade de não ver repetir no Donbass, nos derradeiros dias de finzinho de mandato, a queda presenciada em Cabul, nos primeiros meses de seu governo?
O G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, foi criado em 1999, após a sucessão de crises desencadeadas pelo ascensão neoliberal mundo afora naquela década (crise da Ásia, Crise da Rússia, antecedidas pela Crise do México), a do “fim da história” pós-dissolução da União Soviética e queda do socialismo.
Uma espécie de extensão do G7, o condomínio fechado de economias ricas, ex-potências coloniais e imperialistas de quatro costados. Inicialmente, era integrado pelos ministros das finanças e pelos presidentes dos bancos centrais desses países.
O G20 passou a ter novo papel, passando a ser constituído pelos chefes de Estado do grupo em 2008, quando os EUA estiveram à beira da bancarrota, com grandes bancos e corporações falidos e o G7 nas cordas.
Era Washington, em alguma medida, entregando os anéis para não perder os dedos, nos frenéticos dias em que o mundo se viu diante de um novo ‘Crash’ de 1929.
Debâcle que só não ocorreu graças à China, que basicamente aguentou o repuxo de manter o mundo à tona, graças a ter mantido seu sistema de planejamento estatal, os bancos estatais e o foco na produção, ao invés da louca corrida aos derivativos fabricados nos porões de Wall Street e desovados no planeta inteiro como ouro de tolo.
Na abertura, ao falar sobre 2008, Lula fez questão de ressaltar que, naquele momento de crise, “escolheu-se salvar os bancos, em vez de ajudar pessoas, optou-se por socorrer o setor privado, em vez de fortalecer o Estado, decidiu-se priorizar economias centrais, em vez de apoiar países em desenvolvimento. O mundo voltou a crescer, mas a riqueza gerada não chegou aos mais necessitados”.
É sobre esse “day after” que o G20 segue tendo de se defrontar até hoje. “Não é surpresa que a desigualdade fomente ódio, extremismo e violência. Nem que a democracia esteja sob ameaça. A globalização neoliberal fracassou”, observou Lula aos líderes presentes.
Constituído por África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Europeia, no ano passado, a União Africana, que congrega 53 nações, ingressou no grupo, corrigindo uma injustiça histórica.
A cúpula do Rio do G20 também coincidiu com um grande avanço na democracia no Brasil: a prisão dos “kids pretos” desmascarados por atentarem contra o país e tramarem um golpe e o assassinato do presidente eleito Lula, do seu vice Geraldo Alckmin, e do então presidente do TSE e ministro do STF, Alexandre de Moraes. Uma cúpula realmente memorável.
Fonte: Papiro