STF julga ações sobre internet em cenário marcado pelo uso antidemocrático das redes
Dois pontos do Marco Civil da Internet, em vigor desde 2014, estarão sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF) a partir desta quarta-feira (27). O julgamento das ações acontece num momento em que os riscos ao país da radicalização política por parte da extrema-direita — que tem nas redes sociais seu principal instrumento de mobilização e incitação ao ódio — ganhou contornos ainda mais graves.
Em pauta no Supremo estão dois recursos extraordinários de repercussão geral. Um deles, com relatoria do ministro Dias Toffoli, discute se o artigo 19 do MCI é constitucional ou não. Esse artigo exige que uma ordem judicial específica seja emitida antes que sites, provedores de internet e aplicativos de redes sociais sejam responsabilizados por conteúdos prejudiciais publicados por outras pessoas.
O tema está diretamente relacionado ao outro recurso extraordinário, relatado pelo ministro Luiz Fux, que aborda a responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de internet pelo conteúdo gerado pelos usuários e a possibilidade de remoção de conteúdos que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas a partir de notificação extrajudicial.
Além desses, estará em análise uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), cujo relator é o ministro Edson Fachin, que trata da possibilidade de bloqueio do aplicativo de mensagens WhatsApp por decisões judiciais, analisando se o bloqueio ofende o direito à liberdade de expressão e comunicação e o princípio da proporcionalidade. A matéria foi tema de audiência pública realizada em julho de 2017.
Influência do cenário atual
O julgamento tem um significado especial, principalmente considerando a atual conjuntura nacional e a falta de instrumentos para fazer frente à “terra sem lei” das redes sociais, graças à inação do Congresso. Dentro do STF, tais elementos deverão contar para a decisão final sobre os temas.
O indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros 36 elementos extremistas (25 dos quais militares) devido ao planejamento de um golpe de Estado em 2022 para impedir a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva é o principal aspecto a pairar sobre o cenário atual.
Vale destacar que a conclusão deste inquérito foi apresentada dois dias após operação da Polícia Federal que prendeu quatro militares e um policial federal que montaram um plano para assassinar Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, bem como o ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Além disso, uma semana antes, em um atentado contra o STF, o bolsonarista Francisco Wanderley Luiz se explodiu em frente à Corte após a detonação de bombas em dois locais da praça dos Três Poderes. Realizado menos de dois anos após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, o ato ressuscitou a apreensão quanto a novas investidas antidemocráticas por parte de seguidores de Bolsonaro, incitados, ao longo de anos, via redes sociais.
Um dos elementos centrais a perpassar todos esses atos é o uso das plataformas como ferramentas de disseminação de notícias falsas, teorias conspiratórias e discursos golpistas e de ódio por parte da extrema-direita e dos bolsonaristas para mobilizar e instigar seus seguidores.
O uso indiscriminado e sem controle das plataformas por movimentos políticos de extrema-direita ao longo dos últimos anos, dentro e fora do Brasil, gerou uma série de efeitos negativos às sociedades, entre os quais riscos reais à democracia.
Para fazer frente à nova realidade, vários países investiram em legislações mais rígidas, com foco especialmente na responsabilização das big techs pela veiculação de conteúdos violentos, preconceituosos e golpistas — que figuram entre os mais lucrativos aos seus negócios — e no maior controle ao que é publicado, sem que a liberdade de expressão seja cerceada.
No Brasil, movimentos sociais e políticos e entidades ligadas ao uso responsável e democrático da internet têm cobrado uma legislação específica sobre o tema, já que o Marco Civil da Internet não se debruça sobre todos os aspectos necessários para regular as redes hoje.
O projeto de lei 2630/2020, aprovado no Senado e relatado na Câmara pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), procurou criar anteparos legais para enfrentar o problema. No entanto, sua votação foi suspensa no ano passado após ofensiva das big techs e da bancada bolsonarista. Neste ano, sua tramitação foi interrompida pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que propôs um “grupo de trabalho” para formular uma nova versão do projeto, o que até hoje não ocorreu.
Considerando a falta de atitude do Congresso com relação à regulação das redes e o uso dessas plataformas para objetivos antidemocráticos, parece que restará novamente ao STF cumprir com esse papel, estabelecendo novos parâmetros.
“Nós iríamos começar antes [o julgamento], mas o Congresso ia regulamentar. A ausência de uma regulamentação faz com que a jurisdição constitucional tenha que atuar”, declarou o ministro Alexandre de Moraes, nesta segunda-feira (25). “Na história da humanidade, todas as atividades que repercutem na sociedade foram regulamentadas.”