Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Estar no topo do topo da pirâmide social no Brasil traz benesses financeiras que vão muito além dos altos valores naturalmente disponíveis a esse estrato social. Essa ínfima fatia da população é privilegiada, também, por um sistema que não tributa sua renda de acordo com o seu tamanho, o que o torna altamente regressivo e injusto. 

Apesar de as alíquotas cobradas pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) serem progressivas, elas são aplicáveis apenas sobre uma parte dos rendimentos, como é o caso dos salários, de maneira que a partir de um determinado nível de ganhos, ela deixa de ser progressiva e se torna nula ou até regressiva justamente para aqueles que poderiam pagar mais. 

Esta é uma das constatações feitas por um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nesta terça-feira (29). As evidências trazidas pela nota técnica confirmam que “a tributação da renda deixa de ser progressiva no ponto mais alto do topo da pirâmide e, na média, não passa de 14%, o que é um patamar muito baixo em perspectiva internacional”. 

Cabe destacar que a tabela do imposto de renda, sem considerar os isentos, vai de 7,5% a 27,5%, a depender da renda, sendo esta última aplicada a brasileiros que ganham mais de R$ 4.664,68 mensais, ou seja, pessoas que estão muito longe de serem consideradas ricas. 

“Existem outras rendas que estão submetidas a outras alíquotas e, no caso extremo, temos muitos rendimentos que são isentos, como ocorre com os lucros e dividendos distribuídos pelas empresas para os seus acionistas. Esse lucro é tributado na empresa, mas é livre de qualquer imposto na distribuição para as pessoas físicas”, explica Sérgio Wulff Gobetti, pesquisador do Ipea responsável pela nota técnica. 

Para chegar a essa conclusão, o estudo considerou três cenários diferentes. Em todos, leva em conta a hipótese de a totalidade do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (IRPJ/CSLL), incidente no caso das empresas do Simples Nacional, ser de fato transferida aos acionistas. Mas, para os demais dividendos, foram assumidos três distintos graus de repasse: 0%, 50% e 100%. 

Observando os cálculos resultantes desses cenários, verificou-se que, mesmo no caso hipotético em que todo imposto pago pelas empresas seja transferido aos acionistas, a taxa média de tributação chega a um máximo de 14,2% na fatia de renda em torno de R$ 516 mil anuais (R$ 43 mil mensais). A partir daí, começa a cair, atingindo uma média de 13,3% entre as pessoas com renda superior a R$ 1 milhão (R$ 83 mil mensais), grupo que representa os 0,2% mais ricos da sociedade brasileira.

O fato de os 14% pagos por quem está no topo ser um percentual médio, conforme assinala o estudo, “não atenua, mas agrava o problema, porque isso significa que, se alguns contribuintes no topo estão suportando uma carga maior do que essa, há outros que usufruem de níveis de tributação ainda mais baixos. Esse é o caso de um grupo de 38,4 mil pessoas que, segundo dados do IRPF, são os mais ricos entre os declarantes que se identificam como sócios de empresas do Simples Nacional, com renda individual média de R$ 1,6 milhão em 2022”. 

Segundo Gobetti, situações como essas ocorrem porque “a carga tributária efetiva sobre o lucro das empresas é mais baixo do que a gente imagina quando a gente olha só para as alíquotas nominais. Estudos recentes da Receita Federal mostram que a alíquota efetiva sobre o lucro do Simples está em torno de 4%, no lucro presumido chega a 11% e para as empresas do lucro real, varia de 22% a 30%”. 

A nota técnica ressalta que “os milionários do Simples Nacional pagam, em média, apenas 7,4% de imposto sobre tudo que ganham, incluindo aí os valores imputados de IRPJ/CSLL sobre os R$ 48 bilhões de dividendos recebidos em 2022 (sendo R$ 2 bilhões de dividendos de outras empresas). Ou seja, a carga tributária suportada pelos super-ricos do Simples Nacional é inferior àquela paga por um trabalhador assalariado que ganhe R$ 4,5 mil mensais e inferior também àquela paga por outros empresários com mesmo nível de renda”. 

De acordo com estimativa do pesquisador, entre 2015 e 2019, cerca de R$ 300 bilhões em valores corrigidos deixaram de ser arrecadados por empresas enquadradas nos regimes do Simples Nacional e do Lucro Presumido. 

Privilégios históricos

Em suas considerações finais, o estudo argumenta que essa distorção em favor dos ricos resulta de uma série de privilégios que foram sendo perpetuados no sistema tributário ao longo da história, entre as quais estão não apenas a isenção sobre lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas — que salienta ser um caso raro no mundo — como também os benefícios inerentes aos regimes especiais de tributação e as brechas existentes no regime de Lucro Real.

Enfrentar esse privilégio demanda o enfrentamento de obstáculos que vão além daqueles de ordem política, ou seja, o eterno “lobby” em defesa dos endinheirados que não se limita aos parlamentos. “É preciso mesclar mudanças de caráter estrutural, como a retomada da tributação de dividendos a partir de modelos internacionais, com ajustes pontuais na legislação que sejam capazes de reduzir (mesmo sem eliminar por completo) as distorções que estão presentes hoje nos diferentes regimes de tributação do lucro”, sugere o estudo. 

Do ponto de vista do debate público, o documento assinala a necessidade de mostrar à sociedade, governos e parlamentos que “a falta de equidade com que a renda em geral (e o lucro das empresas, em particular) é tributada tem consequências negativas não só sobre a justiça fiscal, mas também sobre a eficiência econômica”. 

Afinal, acrescenta, “um sistema tributário que premia os empresários que adotem mais estratagemas de planejamento tributário ou simplesmente restrinjam a escala de seus negócios aos limites dos regimes especiais, como no caso brasileiro, gera vantagens comparativas que nada têm a ver com a atividade econômica em si”.