Michel Roberts é um economista marxista britânico que trabalhou na City londrina como analista econômico | Foto: Reprodução

O economista britânico Michael Roberts fez uma análise da eleição americana que foi publicada alguns dias antes do pleito mas já prevendo a derrota de Kamala Harris. Sua análise, da qual destacamos os principais trechos, deu ênfase na crise econômica, causa principal, segundo ele, das enormes dificuldades do Partido Democrata.

Roberts aponta que tanto o governo Joe Biden quanto o “establishment” oficial americano tentaram pintar de cor-de-rosa a realidade, mas o povo, inconformado com a piora de sua vida, não concordou com esta análise e impôs uma derrota política ao governo.

VIDA PIOROU

A análise econômica de Roberts é demolidora. A vida dos americanos piorou muito da crise de 2008 e da pandemia até agora, diz ele. Acoplado a tudo isso ainda houve o apoio pelos democratas ao genocídio de Israel em Gaza.

“Os americanos sofreram uma pandemia terrível seguida da maior queda nos padrões de vida desde a década de 1930, impulsionada por um aumento muito acentuado dos preços dos bens de consumo e dos serviços”, destaca o economista, acrescentando que “o crescimento do PIB de 2,5% está concentrado no mundo financeiro e o agregado familiar médio americano já não possui ativos financeiros para especular”.

Roberts avaliou que “não admira que um inquérito recente tenha revelado que 56% dos americanos pensavam que os EUA estavam em recessão e 72% pensavam que a inflação estava a aumentar”.

“O mundo pode ser ótimo para os investidores da bolsa, para as “Sete Magníficas” empresas de alta tecnologia dos meios de comunicação social e para os multimilionários, mas não é assim para muitos americanos”, destacou.

A “narrativa” de que tudo vai bem dizia, segundo Roberts, “que o mercado de ações dos EUA está em alta, o dólar está em alta nos mercados cambiais, a economia dos EUA está crescendo cerca de 2,5% e o desemprego não ultrapassa os 4,1%”.

FORA DA REALIDADE

Chegaram a dizer que a economia dos EUA estaria conseguindo aquilo que se chama uma “aterrisagem suave”, ou seja, não houve recessão quando saiu da crise pandêmica de 2020. Há quem chegasse ao ridículo, lembra o autor, de chamar a economia americana de “economia de Benjamin Button”: a economia dos EUA estaria ficando cada vez mais jovem e melhor.

A versão cor-de-rosa não bateu com o desempenho de Kamala Harris, que esteve apenas empatada nas sondagens com o antigo presidente republicano Donald Trump. “De fato, o mundo das apostas considerava que Trump iria ganhar [como efetivamente ocorreu]. Como é que isto pode acontecer se a economia dos EUA estava indo tão bem?”, indagou Roberts.

Segundo ele, “parece que uma parte importante do eleitorado não está assim tão convencida de que os tempos são prósperos e melhores para eles”. Na última sondagem do WSJ, 62% dos entrevistados classificaram a economia como “não muito boa” ou “má”, o que explica a falta de dividendos políticos para o Presidente Biden ou Harris.

O economista demonstrou porque o americano médio não acreditou em nada que era dito pelo governo. “Eu diria que a razão para este fato tem duas vertentes. Em primeiro lugar, o PIB real dos EUA pode estar crescendo e os preços dos ativos financeiros disparando, mas a história é diferente para o agregado familiar médio americano, quase nenhum dos quais possui ativos financeiros para especular”. “Em vez disso”, prosseguiu, “foram os investidores ricos que aumentam a sua riqueza”.

“Os americanos sofreram uma pandemia terrível seguida da maior queda nos padrões de vida desde a década de 1930, impulsionada por um aumento muito acentuado dos preços dos bens de consumo e dos serviços”, explicou.

PERDAS SALARIAIS

Ele apontou que os aumentos dos salários médios não conseguiram acompanhar o ritmo da inflação até aos últimos seis meses, aproximadamente. E, oficialmente, os preços continuam cerca de 20% mais elevados do que antes da pandemia, mas com muitos outros itens não abrangidos pelo índice oficial de inflação (seguros, taxas de hipoteca, etc.) disparando. “Assim, depois de contabilizados os impostos e a inflação, os rendimentos médios são praticamente os mesmos de quando Biden assumiu o governo”, lembrou.

O autor mostra que o mundo pode ser ótimo para os investidores da bolsa, para as “Sete Magníficas”, empresas de alta tecnologia dos meios de comunicação social, e para os multimilionários, mas não é assim para muitos americanos.

“Há uma desconexão entre os pontos de vista otimistas do governo e dos economistas da corrente dominante e os sentimentos “subjetivos” da maioria dos americanos. O sentimento dos consumidores americanos está muito pior do que o registado quando Biden assumiu o governo, disse o autor.

Michael Roberts destacou que os americanos estão bem cientes dos custos que os índices oficiais e os economistas tradicionais ignoram. “As taxas hipotecárias atingiram o seu nível mais elevado em 20 anos e os preços das casas subiram para níveis recorde. Os prêmios dos seguros de automóvel e de saúde dispararam”, argumentou.

De fato, lembrou ele, “a desigualdade de rendimentos e de riqueza nos EUA, uma das mais elevadas do mundo, só tem se agravado. O 1% do topo dos americanos fica com 21% de todos os rendimentos pessoais, mais do dobro da quota-parte dos 50% da base! E o 1% do topo dos americanos detém 35% de toda a riqueza pessoal, enquanto 10% dos americanos detêm 71%; no entanto, os 50% mais pobres detêm apenas 10%!”

PIB FICTÍCIO

“Quando olhamos mais de perto para os tão apregoados números do PIB real percebemos por que razão a maioria dos americanos não se beneficia disso. A taxa de crescimento do PIB é impulsionada pelos serviços de saúde, que na realidade medem o aumento do custo dos seguros de saúde, e não melhores cuidados de saúde, e esse custo disparou nos últimos três anos. E depois há os bens não vendidos, ou seja, produção sem venda. E também é computado o aumento da despesa pública, principalmente para a fabricação de armas, que dificilmente contribui para a produção”, denunciou o economista.

Ele disse que se o olhar for para a atividade econômica no setor da indústria de transformação dos EUA, com base na chamada pesquisa com os gestores de compras, “o índice mostra que a indústria de transformação dos EUA está em contração há quatro meses consecutivos antes das eleições de novembro (qualquer resultado abaixo de 50 significa contração)”.

O governo e a mídia falavam em baixa taxa de desemprego dos EUA. Mas grande parte do aumento líquido de postos de trabalho está, segundo Roberts, “no emprego em tempo parcial ou nos serviços públicos, tanto federais como estatais”.

“O emprego em tempo integral em setores produtivos importantes, que pagam melhor e oferecem uma carreira, tem se retraído”, denunciou. “Se um trabalhador tiver de aceitar um segundo emprego para manter o seu nível de vida, poderá não se sentir tão otimista em relação à economia. De fato, os segundos empregos aumentaram significativamente”, lembrou.

EMPRESAS NÃO CONTRATAM

Segundo o autor britânico, as empresas estão hesitantes em contratar trabalhadores a tempo integral e os empregados estão relutantes em pedir demissão devido a preocupações com a segurança do emprego e a uma crescente escassez de oportunidades disponíveis.

Os economistas convencionais, diz Roberts, referem-se ao indubitável melhor desempenho da economia dos EUA em comparação com a Europa e o Japão, e em comparação com o resto das principais economias capitalistas do G7 no seu conjunto. Mas, disse ele, “uma taxa média de crescimento real do PIB de 2,5% não é assim tão bem sucedida quando comparada com a década de 1960, ou mesmo com a década de 1990, ou antes da Grande Recessão de 2008, ou antes da pandemia de 2020”.

“As principais economias permanecem naquilo a que chamei uma Longa Depressão, ou seja, após cada queda ou contração (2008-9 e 2020), segue-se uma trajetória mais baixa de crescimento real do PIB – ou seja, a tendência anterior não é restaurada. A taxa de crescimento registada antes do colapso financeiro global (GFC) e da Grande Recessão não regressou; e a trajetória de crescimento caiu ainda mais após a pandemia de 2020. O Canadá ainda está 9% abaixo da tendência anterior à GFC; a zona euro está 15% abaixo; o Reino Unido 17% abaixo e os EUA ainda estão 9% abaixo”, apontou.

Além disso, lembrou o economista britânico, “grande parte do desempenho dos EUA em termos de crescimento econômico é resultado de um aumento acentuado da imigração líquida, duas vezes mais rápido do que na zona do euro e três vezes mais rápido do que no Japão. De acordo com o Gabinete de Orçamento do Congresso, a força de trabalho dos EUA (não o emprego) vai crescer em 5,2 milhões de pessoas até 2033, graças principalmente à imigração líquida, e prevê-se que a economia cresça mais 7 biliões de dólares na próxima década do que teria crescido sem o novo fluxo de imigrantes”.

IMIGRAÇÃO

“Por isso”, disse ele, “é uma grande ironia que a segunda razão pela qual o governo de Biden é atacado por Trump seja a questão da imigração. “Parece que muitos americanos consideram a contenção da imigração como uma questão política fundamental – ou seja, culpam o baixo crescimento do rendimento real e os empregos mal pagos pelo excesso de imigrantes e, no entanto, o que acontece é o contrário. Na verdade, se o crescimento da imigração abrandar ou se o novo governo introduzir restrições severas ou mesmo proibições à imigração, o crescimento econômico e o nível de vida dos EUA serão afetados”, disse Roberts.

“A única forma de a economia dos EUA poder sustentar um crescimento real do PIB de 2,5% ao ano durante o resto da presente década seria através de um aumento muito acentuado da produtividade da mão-de-obra americana. No entanto, ao longo das décadas, o crescimento da produtividade dos EUA está em queda. Na década de 1990, o crescimento médio da produtividade foi de 2% ao ano e ainda mais rápido, de 2,6% ao ano, durante a década de 2000, alimentada pelo crédito ‘dot.com’”.

“Mas nos anos da Longa Depressão da década de 2010, a taxa média caiu para o seu valor mais baixo, 1,4% ao ano. Desde a Grande Recessão de 2008 até 2023, a produtividade cresceu apenas 1,7% ao ano. Se a dimensão da mão-de-obra empregada parasse de aumentar devido à contenção da imigração, o crescimento real do PIB cairia para menos de 2% ao ano”, destacou Roberts.

Ele lembrou que “a corrente dominante espera que os enormes subsídios concedidos pelo governo às grandes empresas de alta tecnologia impulsionem o investimento em projetos que aumentem a produtividade. Em particular, de que as despesas maciças com a IA acabarão por produzir um aumento sustentado e gradual do crescimento da produtividade. Mas essa perspectiva permanece incerta e duvidosa – pelo menos tendo em conta o ritmo da introdução destas novas tecnologias na economia dos EUA”.

Até agora, apontou o economista, “o crescimento da produtividade tem-se verificado sobretudo na indústria dos combustíveis fósseis, prejudicial ao clima e ao ambiente, com poucos sinais de infusão noutros sectores. Desde 2010, a produção de petróleo e gás nos EUA quase duplicou, mas o emprego no setor a montante diminuiu. Assim, os ganhos de produtividade no setor foram alcançados através da diminuição do emprego”.

ESTOURO DA BOLHA

“Existe um sério risco”, alertou Roberts, “de que uma enorme bolha de investimento está se acumulando, financiada por um aumento da dívida e por subsídios governamentais, que poderá se desmoronar se os retornos sobre o capital para o setor empresarial dos EUA provenientes da IA e da alta tecnologia não se concretizarem. A realidade é que, para além do boom de lucros das chamadas gigantes das redes sociais de alta tecnologia, a rentabilidade média dos sectores produtivos do capitalismo norte-americano está em mínimos históricos”.

“Em primeiro lugar, cerca de 42% das empresas americanas de pequena capitalização não são rentáveis, o índice mais elevado desde a pandemia de 2020, quando 53% das empresas de pequena capitalização estavam perdendo dinheiro”.

“Em segundo lugar, grande parte do aumento dos lucros é fictício (para utilizar o termo de Marx para os lucros obtidos através da compra e venda de ativos financeiros que supostamente representam ativos e lucros reais das empresas, mas não o são). Utilizando o método de Jos Watterton e Murray Smith, dois economistas marxistas canadenses, estimo que os lucros fictícios são agora cerca de metade dos lucros totais obtidos no setor financeiro. Se isso desaparecesse num crash financeiro, prejudicaria seriamente as corporações americanas” apontou o economista.

Fonte: Papiro