Pesquisas apontam que Yamandú Orsi teria intenção de voto suficiente para vencer no primeiro turno. Foto: Divulgação

A Frente Ampla (FA) do Uruguai chega às eleições de 2024 após um período de autocrítica e renovação. Em entrevista (leia a íntegra abaixo), o secretário-geral do Partido Comunista do Uruguai (PCU), Juan Castillo, abordou os desafios e as expectativas da coalizão de esquerda, que busca reconquistar a confiança dos eleitores após a derrota em 2019 e enfrentar o impacto do atual governo de direita.

Os resultados das pesquisas atuais sugerem que a Frente Ampla está próxima de retornar ao poder. Yamandú Orsi, ex-prefeito de Canelones, lidera com 42% das intenções de voto, segundo dados do instituto Opción. Seu principal adversário, Álvaro Delgado, ex-secretário da Presidência de Lacalle Pou, aparece com 24%, seguido por Andrés Ojeda, do Partido Colorado, com 12%. A vantagem de Orsi é significativa, e se mantida, poderia evitar um segundo turno, uma vez que os demais candidatos juntos somariam apenas 41%.

Apesar de as pesquisas indicarem uma vantagem importante para a FA, Castillo lembra que o sistema eleitoral uruguaio exige que um partido obtenha 50% mais um dos votos para vencer no primeiro turno. Caso contrário, um segundo turno pode ser necessário, o que pode nivelar a disputa entre os blocos de esquerda e direita. O desafio da FA é obter a maior quantidade de votos possível no primeiro turno, garantindo uma composição favorável no parlamento.

Reencontro com o povo

A força da Frente Ampla, no entanto, está enraizada em sua base militante, composta por diversos setores da esquerda, como o Movimento de Participação Popular (MPP) de José Mujica e os partidos Comunista, Socialista e Democrata Cristão. A capital Montevidéu, que concentra 40% da população uruguaia, permanece um bastião da Frente Ampla, governada por seus líderes desde 1990.

Castillo destacou que a FA, após a derrota de 2019, passou por um profundo processo de reflexão, reconhecendo a necessidade de reconectar-se com as organizações sociais e com as demandas populares. “A esquerda, quando se distancia do povo, perde sua essência”, afirmou.

Fim de um ciclo

A derrota da Frente Ampla nas eleições de 2020 no Uruguai marcou o fim de 15 anos de hegemonia da esquerda no país e destacou uma mudança significativa no cenário político latino-americano, que havia experimentado uma ascensão progressista conhecida como “onda rosa”. Com a vitória de Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, a coalizão de centro-direita que assumiu o poder afastou-se das políticas sociais implementadas pelos governos anteriores.

Castillo foi categórico: “Se a direita não foi mais nociva, foi por conta da luta social e política”. Ele destacou que os últimos quatro anos foram marcados por perdas salariais, aumento da pobreza infantil e uma reforma da previdência social que penalizou trabalhadores. Castillo criticou ainda o crescimento do narcotráfico e a deterioração da segurança pública, dois temas centrais no debate eleitoral.

Em 2020, Lacalle Pou adotou um discurso centrado em segurança e combate à criminalidade, temas que ressoaram fortemente no interior do país, onde o aumento da criminalidade após a pandemia tornou-se preocupação central. Essa estratégia foi crucial para Lacalle superar o candidato da Frente Ampla, Daniel Martínez, por uma margem apertada de menos de 40 mil votos, em uma eleição decidida no segundo turno.

Previdência Social no centro do debate

A coalizão governista enfrenta o desafio de equilibrar uma agenda conservadora com as demandas de uma população que valoriza o legado progressista dos governos de Tabaré Vázquez e José Mujica. Ambos os líderes foram responsáveis por avanços significativos nas áreas de saúde, educação, aumento do salário mínimo e direitos sociais, como a legalização da maconha e do aborto.

O grande tema destas eleições, segundo Castillo, é o plebiscito proposto por sindicatos e organizações sociais que visa revogar a reforma da previdência aprovada pela direita. A proposta sindical mantém a idade mínima de aposentadoria em 60 anos, equipara as pensões ao salário mínimo e elimina os fundos privados de aposentadoria. Curiosamente, essa pauta, que não foi inicialmente promovida pela FA, acabou se tornando o foco central da campanha, dividindo opiniões dentro da coalizão. A FA optou por dar liberdade de ação a seus membros no tratamento do tema, o que reflete a complexidade e as diferentes visões.

Política externa e desafios futuros

Em relação à política externa, Castillo criticou duramente o governo atual, que ele descreveu como “muito barulho e poucas ações concretas”. O escândalo do caso Marset, envolvendo a entrega de um passaporte a um narcotraficante em Dubai, foi um dos pontos baixos da atual administração. Além disso, Castillo observou a falta de clareza nas negociações com o Mercosul e a União Europeia, além do fracasso em avançar com um Tratado de Livre Comércio com a China.

Para o futuro, Castillo acredita que a FA deve corrigir o rumo da política externa, apostando na consolidação de um mundo multipolar e focando em acordos de paz. No âmbito doméstico, ele enfatizou a importância de fortalecer o papel do Estado como ferramenta de proteção social e promoção de justiça econômica.

Expectativas para o Partido Comunista

O Partido Comunista do Uruguai, segundo Castillo, espera aumentar sua representação no parlamento e no futuro governo. “Nosso programa é o programa da Frente Ampla”, ressaltou. Embora o PCU tenha suas próprias prioridades, como a necessidade de aprofundar certas reformas, o partido se compromete com a agenda acordada dentro da coalizão. A escolha de Carolina Cosse para a vice-presidência é vista como um resultado natural do processo democrático interno da FA, e Castillo reafirma que o objetivo principal é o triunfo da esquerda.

Com as eleições se aproximando e os desafios econômicos e de segurança no centro do debate, Castillo acredita que a FA está pronta para reconquistar o governo e retomar seu papel histórico de transformação social no Uruguai.

Leia, a seguir, como Castillo respondeu a cada pergunta da reportagem:

A Frente Ampla chega às eleições com grande vantagem, após uma vitória apertada no último governo de Tabaré Vázquez. O que está fazendo a Frente Amplo para recuperar o eleitorado?

Considero importante deixar claras algumas particularidades do sistema eleitoral uruguaio. O que pode ser visto como uma grande vantagem, em nosso país, não é necessariamente assim. No Uruguai, para ganhar no primeiro turno, é necessário 50% + 1 dos votos emitidos, ou seja, do total de eleitores que participam da eleição. Portanto, se a FA não conseguir essa quantidade de votos, haverá um segundo turno. Isso é importante de explicar, pois se considerarmos que há dois grandes blocos, um de esquerda e outro de direita (simplificando a explicação), na comparação entre os blocos no segundo turno, essa diferença se reduz consideravelmente. Vale ressaltar que não há uma soma linear dos partidos em uma coalizão, e os testes empíricos no Uruguai mostram que a esquerda sempre atrai votos dos partidos do bloco de direita. Além disso, as pesquisas indicam uma vantagem significativa para a FA em um possível segundo turno.

Essencialmente, o primeiro turno é muito importante, pois define a composição do Poder Legislativo, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados.

A FA passou por um processo de autocrítica após a derrota de 2019. Um dos principais aprendizados foi a necessidade de fortalecer os vínculos e o diálogo com as organizações sociais, em outras palavras, entender e aceitar que as transformações não são realizadas apenas pela institucionalidade do governo, mas acontecem quando há uma ação conjunta com as grandes maiorias populares. A esquerda, afastada do povo, perde sua essência e, com isso, a verdadeira possibilidade de se transformar em um instrumento válido para as mudanças que as grandes maiorias precisam.

Em busca de recuperar esses laços, percorremos o país e promovemos ações de aprendizado coletivo. Renovamos a direção da Frente Ampla e buscamos, de forma permanente, voltar a ser o canalizador das necessidades do nosso povo.

A melhor forma de resumir esta resposta é com a seguinte frase: a Frente Ampla retomou o vínculo histórico com seu povo.

Com o atual governo formado por uma ampla frente que vai do centro à extrema direita, os uruguaios sentiram muito o impacto da mudança?

Sem dúvidas. Também é verdade que, se o impacto não foi maior, isso se deveu à luta social e política. A direita sempre quer fazer mais; se não faz, é porque não pode, não porque não quer. Foram quatro anos de perda salarial nos salários e nas aposentadorias, a reforma da previdência, e outras leis que favoreceram o grande capital em detrimento dos trabalhadores. O aumento da pobreza infantil e o não cumprimento sistemático das promessas eleitorais trouxeram medidas regressivas. Há inúmeros dados estatísticos que expõem a falsidade do discurso que o governo vende.

De qualquer forma, dois dados são essenciais: o salário está em níveis semelhantes aos de 2019, e a segurança pública está em uma situação muito delicada, com o aumento do narcotráfico em determinadas áreas do país.

Segurança e economia são fatores muito importantes na decisão do eleitorado, sem falar que este governo tem uma longa lista de casos de corrupção.

Quais são os principais temas em debate nestas eleições?

Sem dúvida, o grande tema de debate é o plebiscito sobre a previdência social. Essa iniciativa de reforma constitucional é proposta pelo movimento sindical (PIT CNT) e por outras organizações sociais. É uma proposta que surge como medida de rejeição à reforma aprovada pela direita e que expõe a vigência da luta de classes em nosso país. A proposta tem três pilares: i) manter os 60 anos como idade mínima para aposentadoria, ii) equiparar as aposentadorias mínimas a um salário mínimo nacional e iii) eliminar os fundos de pensão (AFAPS).

O curioso é que, embora não tenha sido impulsionado pela esquerda, esse tema se transformou no principal assunto da campanha, inclusive com diferentes visões dentro da própria FA, a ponto de a liberdade de ação ter sido definida para seu tratamento.

Segurança e economia estão na agenda, embora o que ocorre constantemente seja um ataque de todos os candidatos da coalizão a Frente Ampla. Fala-se mais dos governos da FA do que do último período, e tenta-se orientar a eleição para uma disputa individualista entre os candidatos, e não de ideias. Outro ponto a destacar é que não há uma mulher candidata à presidência nesta disputa eleitoral.

Como foi a campanha eleitoral? Delgado trouxe alguma carta na manga? Desinformação, notícias falsas, guerra cultural e violência política fazem parte da rotina eleitoral uruguaia, como acontece no Brasil e na Argentina, por exemplo?

A campanha foi tranquila, até demais, considerando a importância do momento histórico. Apenas algumas ações pontuais de candidatos que precisavam de visibilidade, mas, no geral, não houve eventos de violência política. O Uruguai tem características demográficas e geográficas que permitem manter um contato próximo com o eleitorado, o que, na minha opinião, impede o desenvolvimento de campanhas sujas, pelo menos por enquanto.

Qual é o tamanho do Partido Comunista nesta coalizão? A derrota de Carolina Cosse pesou no partido? Era possível garantir uma agenda comunista no programa de governo de Orsi?

O PCU certamente aumentará sua representação parlamentar e no futuro governo nacional. Nosso programa é o programa da Frente Ampla, o programa que foi discutido durante meses e entre milhares de militantes da FA, e do qual os comunistas participaram ativamente. Portanto, podemos dizer que é nosso programa. É verdade que, como partido, vemos a necessidade de aprofundar as mudanças, principalmente em algumas áreas, mas isso não nos distancia do programa da FA.

O PCU será um grande defensor do cumprimento desse programa, então podemos dizer que, no programa da FA, existe uma agenda impulsionada pelo PCU e pelos comunistas. Não concebemos a ideia de concordar com algo e depois boicotá-lo. O PCU é uma força política histórica no Uruguai; muitos comunistas deram a vida em defesa da democracia, e hoje, como resultado de um processo democrático, estamos a poucos dias de nos tornarmos, junto com nossas alianças, a segunda força política da Frente Ampla.

Optamos por apoiar Carolina Cosse para a presidência; hoje, ela é candidata a vice-presidente. Para nós, essa questão foi resolvida democraticamente. Desde sempre, nosso objetivo é o mesmo: a vitória da Frente Ampla.

Quais são as expectativas para a composição parlamentar?

O PCU desenvolveu e construiu uma política de alianças durante vários meses, o que possibilitou apresentar uma lista comum junto a dois setores que, em 2019, apresentaram listas próprias para o Senado. Além disso, conseguimos configurar um sublema (sistema de acúmulo de votos para as cadeiras do Senado) que permite potencializar os votos obtidos na eleição. Pode-se dizer que, com essa política de alianças, podemos aspirar a um crescimento significativo tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados.

(por Cezar Xavier)