China celebra 75 anos: da Revolução Cultural ao pódio das maiores economias do mundo
Cerimônia de hasteamento da bandeira durante celebração dos 75 anos da República Popular da China.
Em uma cerimônia significativa realizada no último domingo (29), a ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff recebeu a Medalha da Amizade do governo chinês. Em seu discurso, ela destacou: “Dificilmente em algum momento no passado um país conseguiu se transformar em 75 anos na segunda maior economia do mundo, no país que conseguiu elevar o nível educacional do seu povo para competir com os níveis dos países desenvolvidos, (no país) que lidera hoje em ciência e tecnologia e na aplicação de inovações em todos os campos e áreas, especificamente na indústria”. Essa frase reflete a magnitude do progresso chinês ao longo de mais de sete décadas desde a fundação da República Popular da China.
O Partido Comunista da China (PCCh), fundado em 1921, desempenhou um papel central nesse processo, guiado pela teoria do marxismo-leninismo e pelas demandas concretas da sociedade chinesa, marcada pela luta por independência e soberania. Quando Mao Tse Tung proclamou a República Popular da China em 1º de outubro de 1949, aquele país era semi feudal. Um país agrário em mais de 80%, com poucas indústria. A partir da década de 1990, quando a China cresceu 7% em 1999, de lá para cá, jamais cresceu em taxas menores que essa, fluxo interrompido apenas pela pandemia de 2019. Chegou a crescer em 2007 a uma taxa de 11,9%, quando boa parte do mundo jamais ultrapassava os 3%.
A guerra contra a dominação colonial, o fascismo japonês e o nacionalismo fantoche
O surgimento do PCCh foi o resultado da combinação entre a teoria marxista-leninista e as lutas camponesas, operárias e patrióticas que emergiam em uma China fragmentada e subjugada por potências imperialistas. Desde o início, a missão do Partido foi enfrentar a questão nacional, lutando pela verdadeira independência da China, que por décadas esteve sob a dominação colonial de grandes potências ocidentais. Essa luta culminou na vitória revolucionária de 1949, que encerrou séculos de monarquia feudal e a subordinação do país a interesses estrangeiros.
A situação caótica que os chineses viviam no início do século XX foi muito bem descrita em umas reflexões escritas em 1924 (As Conferências) por Sun Yat-sen, primeiro presidente do país depois da queda da última dinastia, no final de 1911 e o início de 1912: “Nós somos o Estado mais pobre e fraco do mundo (…). Nossa posição agora é extremamente perigosa (…); se nós não promovermos seriamente o nacionalismo e mantivermos juntos nossos quatrocentos milhões de chineses numa nação poderosa, estamos diante de uma tragédia: a perda de nosso país e a destruição de nossa raça”.
Essa decomposição social era o desfecho de uma situação que se agravava desde os anos 40 do século XIX, quando a decadente dinastia Manchu teve que aceitar várias situações vexatórias impostas por estrangeiros, como o confisco de Hong Kong pela Inglaterra, depois de uma série de batalhas que entrou para História como as Guerras do Ópio.
Tão humilhante quanto, foi o desfecho da famosa Conferência de Versalhes (1919), realizada na França pelas potências europeias com o objetivo de reorganizar o controle sobre o mundo depois da trágica Primeira Grande Guerra (1914-1918). Apesar de ter participado dessa Guerra ao lado das forças vencedoras, a China saiu daquela Conferência derrotada. As concessões alemãs na província de Shandong, ao invés de serem devolvidas para China, foram concedidas ao Japão. Em resumo, a China daquele período era um país internamente dividido e externamente sufocado.
Em meados da década dos 1930s, a China estava dividida em quatro exércitos em guerra: o Exército Vermelho comunista, comandado por Mao Tse Tung, os fascistas japoneses e seu Exército Imperial, os Nacionalistas Guomindang (KMT), comandados por Chiang Kai-Shek e todos os colonialistas europeus e americanos unidos que passaram a apoiá-lo como fantoche para um futuro governo submisso. O povo vestia o vermelho com alegria para derrotar os japoneses, enquanto os soldados do KMT eram abandonados com fome por seus próprios generais.
O PCCh canalizou as revoltas e unificou o povo rumo a uma nova China. Em todos os pontos onde os comunistas assumiram o controle, os males eram erradicados, dependência química de ópio, jogatina, crime organizado, prostituição, pés amarrados, escravidão infantil, mendicância, miseráveis sem teto, analfabetismo e fome. As “grandes potências” tiveram que apostar em Chiang Kai-Shek, enquanto o PCCh não só varria o Japão e os imperialistas ocidentais para fora da Nova China como, além disso, despachava o KMT para Taiwan.
A fundação de um novo estado
A República Popular da China foi proclamada em 1º de outubro de 1949, sob a liderança de Mao Tse Tung, marcando um novo capítulo na história do país, com a implementação de um Estado socialista. O Partido Comunista da China (PCCh) se estabeleceu no poder após décadas de luta, lançando as bases para uma transformação econômica, política e social. Mao, que governou até 1959 e posteriormente influenciou a política até sua morte em 1976, foi o rosto dessa revolução. Durante esse período, ele implementou medidas radicais, como a Revolução Cultural (1966-1976), que buscava eliminar vestígios do capitalismo e da ideologia burguesa.
Sob a liderança de Mao Tse Tung, a revolução democrática popular pôs fim ao sistema semifeudal e semicolonial, unificou as diversas etnias e impôs um fim aos tratados desiguais impostos pelas potências imperialistas. A criação da República Popular da China marcou o início de uma nova era na qual o país não mais se submeteria ao jugo do imperialismo.
Contudo, a revolução socialista na China seguiu um caminho único, não replicando modelos estrangeiros, mas construindo um sistema adaptado às condições locais. A construção do socialismo na China foi marcada por avanços e recuos, em um processo que envolveu a superação de desafios econômicos e sociais profundos. Sob a direção do PCCh, o povo chinês empreendeu significativas transformações, buscando uma alternativa viável de desenvolvimento para um país vasto e complexo.
Entretanto, o governo de Mao também enfrentou desafios profundos. Ao nacionalizar os meios de produção, o sistema econômico tornou-se rígido e centralizado, dificultando a adaptação e o crescimento. Após sua morte, o país passou por uma série de transformações sob novas lideranças.
Deng Xiaoping e a reforma econômica
O ponto de virada veio em 1978, quando Deng Xiaoping assumiu a liderança do PCCh e lançou as Reformas e Abertura, que mudariam a trajetória da China. A introdução de uma economia de mercado controlada pelo Estado permitiu a entrada de capital estrangeiro e a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), como Shenzhen, que se tornaria um polo tecnológico e industrial. O desenvolvimento dessas ZEEs alavancou o crescimento econômico e consolidou a China como uma força global emergente.
Deng Xiaoping foi o grande arquiteto dessa transição, que ele definiu como a “etapa primária do socialismo”. Sob sua liderança, a China adotou uma economia de mercado socialista, mantendo o controle estatal, mas promovendo a industrialização e o crescimento econômico. Deng insistia que sem o desenvolvimento econômico, o socialismo não poderia prosperar. “Se nós desistirmos do socialismo, não aplicarmos a política de Reforma e Abertura, não desenvolvermos a economia, nem melhorarmos a vida do povo, estaremos num beco sem saída”, afirmou ele em 1992.
Os anticomunistas tendiam a bajular Deng Xiaoping, como se ele fosse uma espécie de esperança capitalista contra o comunismo maoista. Mas foi Deng que presidiu a reforma da Constituição da China, em 1982, como uma poderosa e explícita rejeição do neoliberalismo e de tudo que o Ocidente venera no Consenso de Washington.
Para que não haja dúvida, o preâmbulo da Constituição diz assim: “Depois de fundar a República Popular, a China gradualmente completou sua transição de uma sociedade neodemocrática, para uma sociedade socialista. A transformação socialista da propriedade privada dos meios de produção foi completada, o sistema de exploração do homem pelo homem abolido, e foi estabelecido o sistema socialista. A ditadura democrática do povo liderada pela classe trabalhadora e baseada na aliança de operários e camponeses, que é em essência a ditadura do proletariado, foi consolidada e desenvolvida. O povo chinês e o Exército de Libertação do Povo Chinês derrotaram a agressão imperialista e hegemonista, sabotagem e provocações armadas, e assim salvaguardaram a independência e a segurança nacionais da China e reforçaram a defesa nacional.” Diz também: “A China opõe-se firmemente ao imperialismo, à hegemonia e ao colonialismo, trabalha para reforçar a unidade com o povo de outros países, apoia as nações oprimidas e os países em desenvolvimento em sua justa luta para alcançar e preservar a independência nacional e desenvolver as respectivas economias nacionais, e luta para proteger a paz mundial e promover a causa do progresso humano.”
O socialismo com características chinesas, que emergiu da era de Deng Xiaoping, permitiu à China construir uma economia poderosa e dinamizar suas bases produtivas. Ao longo dos últimos 40 anos, a China se transformou em uma potência econômica global, retirando 840 milhões de pessoas da pobreza, uma conquista sem precedentes na história humana. Hoje, a China é responsável por 83% das pessoas que saíram da miséria no mundo nesse período.
Crescimento sustentado e ascensão geopolítica
Ao longo dos anos, sob líderes como Jiang Zemin, Hu Jintao e, atualmente, Xi Jinping, o país continuou sua ascensão. A China emergiu como a segunda maior economia do mundo, com avanços notáveis em ciência, tecnologia e inovação industrial. Xi Jinping, que assumiu a presidência em 2013, colocou uma ênfase maior na política externa, com destaque para a Iniciativa da Nova Rota da Seda. Essa estratégia busca fortalecer a conectividade global por meio de investimentos em infraestrutura, especialmente no Sul Global, demonstrando o compromisso da China em expandir suas influências geopolíticas.
Além disso, Xi foi um dos principais defensores da criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) dos BRICS, uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI, voltada para o financiamento de projetos em economias emergentes, atualmente presidido por Dilma Rousseff. A filosofia de Xi Jinping é encapsulada na ideia de uma “Comunidade com Futuro Compartilhado para a Humanidade”, propondo um mundo mais integrado e cooperativo.
Desafios e confrontos com o Ocidente
Na atualidade, a China é a maior economia global sob o critério da Paridade do Poder de Compra (PPC) e uma potência emergente em diversos setores, como ciência, tecnologia e inovação.
No entanto, esse crescimento meteórico não veio sem críticas. Forças capitalistas internacionais e algumas correntes de esquerda questionam a China em temas como democracia, direitos humanos e proteção ambiental, desafiando a autenticidade do “socialismo com características chinesas”. Nos últimos anos, os Estados Unidos, sob a administração de Joe Biden, lideraram um esforço global para conter a influência da China, promovendo alianças que, em muitos casos, refletem tensões geopolíticas crescentes.
Antes mesmo da China ser admitida na OMC – Organização Mundial do Comércio em dezembro de 2001 – após 15 anos de muita negociação e tentativa de bloqueio pelos EUA – os EUA tudo faziam para impedir que o gigante asiático pudesse crescer e ofuscar o capitalismo ocidental. Derrotado por ampla margem na OMC, nesses quase 20 anos o que mais se viu por parte dos Estados Unidos foi a imposição de taxas e tarifas em produtos chineses que chegam ao mercado norte-americano. Violando inclusive, várias regras da própria OMC e do chamado “livre comércio”.
Em um mundo onde se diz que vivemos a revolução industrial 4.0 – da medicina gênica, da inteligência artificial, a bioengenharia, da impressora 3D – essa acaba sendo uma das guerras principais. O caso mais emblemático está relacionado com a empresa de telefonia móvel chamada Huawei. Tentar destruí-la virou assunto de estado para os EUA e, claro, para a China, que a promove em todo o planeta.
Outro conflito que a China enfrentou nos últimos anos foi com o negacionismo científico diante da pandemia. Apesar de controlar o contágio de forma drástica com base no aconselhamento científico, enquanto os EUA de Donald Trump mergulhavam num genocídio biológico, a China foi atacada e contrariada das mais diversas formas por ter o vírus surgido em seu solo.
O gigante asiático foi responsável pelo abastecimento mundial de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual para os profissionais de saúde), bem como enviou ventiladores pulmonares (respiradores artificiais) e tantas outras coisas, como vacinas, incluindo aí profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, os EUA se omitiram. Até mesmo a União Europeia deu as costas para a Itália quando esta mais precisou de ajuda. Os chineses declararam total apoio à Organização Mundial da Saúde – OMS, aumentando seu aporte financeiro. Donald Trump, por sua vez, retirou seu aporte de 15% de todo o orçamento da Organização sob críticas de que esta estava conduzindo muito mal a luta contra a pandemia.
O maior fator de tensionamento existente hoje nos mares e oceanos ocorre no chamado Mar do Sul da China, que banha basicamente, além da própria China, os países como Vietnã, Brunei, Filipinas e Malásia. A China reivindica sua soberania em uma região inicialmente chamada de Onze Raias, fixadas em 1º de dezembro de 1947, quase dois anos antes do triunfo da Revolução Popular. A crescente ocupação deste território marítimo pela China irrita profundamente os EUA, mas também o Japão, Austrália, os quatro países citados e até a Índia.
Em meio a esse maremoto no Sul da China está situada a ilha de Taiwan, que representou a China na ONU até 1971, embora não passe de uma possessão dos EUA, sem autonomia alguma. Uma base militar a que os EUA fornecem imensas quantidades de armas e temem retornar ao controle chinês, como ocorreu com Hong Kong. Aliás, Taiwan é parte de um conflito diplomático, assim como tantos outros que envolvem representações dos EUA contra a China em diversos organismos internacionais multilaterais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio).
Desde o fim da URSS, os EUA não tinham disputa à altura para sua antiga corrida espacial. No entanto, a cada avanço chinês nesse campo, os EUA investem mais na militarização do espaço, como se fosse sua propriedade territorial, no que já se considera uma guerra e não mais uma corrida, como se dizia eufemisticamente durante a Guerra Fria com os russos.
Conquista e continuidade
Entre as vitórias da China, destaca-se a erradicação da extrema pobreza em 2020, um feito monumental para um país com mais de 1,4 bilhão de habitantes. O contraste com os países ocidentais, especialmente após a crise financeira de 2008 e a pandemia de covid-19, ressalta a resiliência do modelo chinês. A eletrificação de sua frota de automóveis, assim como um gigantesco reflorestamento de suas áreas mais áridas são provas impressionantes de como a China supera as fake news ocidentais de seu suposto atraso na questão energética e ambiental.
A cada ameaça de sanção tecnológica dos EUA, a China abandona sua dependência externa para produzir os próprios insumos tecnológicos, como quando substituiu os poderosos chips de Inteligência Artificial de Taiwan por aqueles que passou a fabricar em seu próprio território. A cada provocação militar, Xi Jinping rapidamente responde com números superiores e tecnologia avançada em suas Forças Armadas. A China tem usado esses desafios globais como trampolins para reafirmar seu papel no cenário internacional.
Os 75 anos da República Popular da China não são apenas um marco na história do país, mas também no cenário global. A China, sob a liderança do PCCh, demonstrou uma originalidade única ao trilhar seu próprio caminho de desenvolvimento, consolidando-se como um exemplo de que é possível alcançar progresso econômico e justiça social sem seguir os modelos ocidentais tradicionais. A Revolução de 1949 não só transformou a China, mas também alterou os rumos da história mundial, mostrando que a emancipação de um povo pode abrir novos horizontes para o futuro da humanidade.
(por Cezar Xavier)