São Paulo (SP), 13/10/2024 – Avenida Padre Arlindo Vieira no bairro do Jabaquara sem energia elétrica desde sexta-feira devido as chuvas. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A concessionária italiana Enel está no centro de uma crise que expõe não apenas a ineficiência em suas operações no Brasil, mas também um padrão recorrente de falhas que se estende por outros países da América Latina. Em São Paulo, a recente interrupção no fornecimento de energia elétrica afetou cerca de 2,1 milhões de imóveis, e mesmo com esforços de recuperação, 250 mil ainda estavam sem energia nesta terça-feira, 15 de outubro.

O tema torna-se particularmente explosivo ocorrendo em pleno segundo turno eleitoral, em que o Guilherme Boulos confronta o candidato à reeleição, Ricardo Nunes, sobre suas responsabilidades com o sofrimento dos moradores da cidade. A Prefeitura tem sido incapaz de garantir a fiscalização e manutenção de podas de árvores, que caem sobre a rede elétrica, que deveria ser subterrânea, gerando apagões que se agravam com a incapacidade da Enel de restabelecer com agilidade o fornecimento.

A empresa enfrenta críticas severas, mas a raiz dos problemas, segundo especialistas e políticos, é estrutural e deriva de uma política de maximização de lucros em detrimento da qualidade dos serviços, algo que já vinha sendo denunciado. Antes de deixar milhões de paulistas sem o serviço, a companhia já tinha um histórico de problemas em Goiás, de onde foi expulsa, e registra falhas e ações movidas pelo Ministério Público em cidades do Rio de Janeiro e do Ceará. A concessionária enfrenta questionamentos até em filiais fora do País, como o caso do braço da empresa que opera no Chile.

O modelo de negócio: lucros à frente da qualidade

Marcos Calvete

Em entrevista, Marcos Hahn Calvete, químico com duas décadas de experiência no Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) de Porto Alegre, traça um paralelo direto entre a crise da Enel e experiências semelhantes vividas no Rio Grande do Sul. Segundo Calvete, o padrão de atuação das concessionárias de serviços públicos sob gestão privada é o de “espremer” as estruturas operacionais e de manutenção em prol das margens de lucro para acionistas. Isso, afirma, leva à redução da capacidade de resposta a emergências, como a recente tempestade que devastou São Paulo, agravando ainda mais os impactos dos eventos climáticos extremos.

“É impressionante como a receita do capital se reproduz pelo planeta”, destaca Calvete, referindo-se à repetição de práticas que priorizam o lucro acima da manutenção de infraestruturas vitais. Ele observa que, em muitos casos, o aumento da frequência de eventos climáticos extremos acaba servindo como uma cortina de fumaça para encobrir o despreparo das concessionárias em situações de crise, algo que parece estar ocorrendo também no caso de São Paulo.

Reincidência e reação governamental

A crise atual em São Paulo não é um caso isolado. Em Goiás, a Enel foi alvo de uma série de reclamações e ações judiciais que resultaram, em 2022, na venda de sua operação à Equatorial Energia. O governador Ronaldo Caiado foi enfático em afirmar que a empresa deveria ter sido “interditada de poder servir no Brasil”, citando prejuízos massivos para produtores rurais e a população em geral. Situações semelhantes também se desenrolaram no Rio de Janeiro e no Ceará, onde as interrupções no fornecimento de energia elétrica levaram à abertura de processos judiciais e comissões parlamentares de inquérito (CPIs) para investigar o serviço “desastroso” da concessionária.

No Rio, o Ministério Público Estadual já abriu ações contra a Enel por problemas crônicos de fornecimento em cidades como Niterói e Petrópolis. A Câmara Municipal de Niterói, inclusive, aprovou por unanimidade um relatório da CPI que recomendava a revogação da concessão da empresa. No Ceará, os apagões não só afetam o setor produtivo e o turismo, mas também colocam em risco a saúde pública, prejudicando hospitais e unidades de atendimento.

O histórico de ineficiência da Enel não se restringe ao Brasil. No Chile, a empresa também foi alvo de duras críticas por parte do presidente Gabriel Boric, que classificou o comportamento da concessionária como “inaceitável” após um grande apagão em agosto deste ano. As falhas, disse Boric, minam a credibilidade da Enel em continuar operando no país.

Pressões por respostas e consequências legais

Diante da insatisfação crescente, há uma expectativa de que pesadas multas sejam aplicadas à Enel, como sugeriu Calvete, especialmente em São Paulo, onde a paralisação afetou diretamente setores industriais cruciais para a economia nacional. O governo federal já anunciou a abertura de um processo disciplinar que pode culminar na rescisão do contrato da Enel no estado. No entanto, Calvete alerta que essa é uma medida extremamente complexa. “Rescisões de contrato são muito complicadas, e em contratos deste vulto, sempre existem cláusulas que protegem as concessionárias absurdamente”, comenta. Ele acredita que a aplicação de multas é uma saída mais tangível no curto prazo, mas reincidências graves podem levar o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O episódio em São Paulo, portanto, adiciona mais uma peça ao quebra-cabeça de problemas enfrentados pela Enel. O aumento da frequência e da intensidade dos eventos climáticos extremos, combinado com uma estrutura de resposta deficiente, agrava os danos causados à população e aos setores produtivos. Embora a Enel tenha reforçado suas equipes e recebido apoio de outras distribuidoras, a resposta tardia à crise em São Paulo alimenta o debate sobre a viabilidade de sua continuidade no país.

A crise da Enel, tanto em São Paulo quanto em outras partes do Brasil e da América Latina, levanta questões fundamentais sobre a gestão de serviços essenciais sob o modelo de concessão privada. A maximização de lucros, como enfatizado por Calvete, muitas vezes resulta na deterioração da qualidade do serviço prestado, expondo a população a riscos desnecessários e prolongados. Com a pressão de autoridades e setores prejudicados, é provável que novas penalidades sejam impostas à empresa, mas a questão subjacente permanece: até que ponto concessionárias como a Enel podem continuar operando com um histórico tão carregado de ineficiências?

O desafio agora é garantir que, em meio a eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, as concessionárias estejam preparadas para responder de forma eficaz. Caso contrário, o ciclo de falhas, críticas e possíveis punições pode continuar, com consequências devastadoras para milhões de consumidores.

(por Cezar Xavier)