Festa pela vitória oposicionista levou multidão às ruas da capital do Sri Lanka | Foto: The National

Em eleições que se tornaram um referendo contra o FMI e o achaque a que o Sri Lanka e seu povo vêm sendo submetidos, a aliança oposicionista Poder Popular Nacional (NPP), encabeçada pelo partido de esquerda Janatha Vimukthi Peramuna (JVP – Frente de Libertação do Povo), elegeu presidente a Anura Kumara Dissanayake, com 42,2%, ou 5,74 milhões de votos.

Ele derrotou o atual presidente, o neoliberal e fantoche pró-norte-americano Ranil Wickremesinghe, da União Nacional Popular (UNP), que só obteve 17,2%, após se tornar um carimbador dos ditames do FMI ao cumprir um mandato tampão desde 2022, quando o presidente regulamentar foi escorraçado por uma revolta popular contra o colapso econômico e a miséria. O incumbente agora derrotado teve 2,32 milhões de votos.

“Esta conquista não é o resultado do trabalho de uma única pessoa, mas do esforço coletivo de centenas de milhares de vocês. Seu comprometimento nos trouxe até aqui e, por isso, sou profundamente grato. Esta vitória pertence a todos nós”, disse Dissanayake após a vitória. Na eleição de 2019, Dissanayake tivera apenas 3% dos votos.

Ele tomou posse nesta segunda-feira (23) e entre os desafios que tem pela frente está a dissolução do parlamento e convocação de eleições legislativas: seu partido só tem três dos 225 deputados. Em sua campanha, ele convocou a antecipar essa eleição para que possa ter um “governo com mandato” para enfrentar o FMI.

Dissanayake, 55 anos, ex-líder estudantil, é deputado e foi ministro da Agricultura no breve período de 2004/5 em um governo de coalizão com outros partidos. Em decorrência da crise, os dois partidos que governaram o Sri Lanka desde a independência formal em 1948 – o Partido Nacional Unido (UNP) e o Partido da Liberdade do Sri Lanka (SLFP) – foram se desagregando em grande medida.

A coalizão Poder Popular Nacional congrega 21 partidos e grupos de esquerda e centro-esquerda e é encabeçada pela Frente Popular de Libertação (JVP, na sigla em inglês), que se considera marxista-leninista, e cuja agenda é enfrentar a política do FMI de dívida e austeridade para a massa do povo do Sri Lanka, bem como a corrupção.

Citada por Camões em Os Lusíadas como Taprobana, a ilha ficou conhecida no Ocidente no tempo do colonialismo sob o nome de Ceilão e pela exportação de chá.

Com 22 milhões de habitantes, Sri Lanka fica no Oceano Índico, tem laços históricos com a Índia e foi colônia portuguesa, holandesa e britânica. Por décadas, enfrentou uma insurreição separatista dos tâmeis, de origem hindu, que são 12% da população, afinal derrotada em 2009.

Já Wickremesinghe, em sua campanha pregou que seria um desastre tentar renegociar com o FMI, alegando que poderia “atrasar a liberação” de uma quarta parcela de quase US$ 3 bilhões ao país, crucial segundo ele para “manter a estabilidade”.

“Não é possível quebrar nenhum acordo feito com o FMI e… países credores”, ele insistiu, em agosto. “Essas metas e referências existentes não são negociáveis”.

Outra dissidência do governismo, o partido Samagi Jana Balawegaya (SJB), de centro-direita, obteve 32,7% dos votos com seu candidato Sajith Premadasa, ou 4,53 milhões de votos, pleiteando que poderia obter do FMI ajustes menos drásticos no arrocho.

Na eleição, concorriam 38 candidatos a presidente. Pelo sistema eleitoral cingalês, em que não há segundo turno, houve a verificação das segunda e terceira opções de cada eleitor, confirmando a vitória de Dissanayake.

Mais conhecido pelas iniciais AKD, em sua campanha ele se comprometeu em renegociar o acordo com o FMI, chamando a conduzir o Sri Lanka a um novo renascimento e a uma visão de uma “Nação Próspera, Uma Vida Bonita”.

A surra de Wickremesinghe nas urnas não foi uma surpresa, já que o mandatário tampão se submeteu a todas as exigências do FMI em troca de um empréstimo de US$ 2,9 bilhões, aplicando o receituário infame nas costas dos trabalhadores em geral, dos servidores públicos e dos camponeses pobres, cortando o subsídio à eletricidade e dobrando o imposto sobre valor agregado para 18%, enquanto os corruptos e os especuladores eram resgatados.

Sob o tacão do FMI, a taxa de pobreza em Sri Lanka aumentou de 11% em 2019 para 26% em 2024. Os salários reais de todos os trabalhadores caíram cerca de 40% nos dois anos de 2022 e 2023. O declínio na renda levou a níveis crescentes de insegurança alimentar, desnutrição e crescimento atrofiado. Cerca de 42% da população foi forçada a adotar métodos de “restrição alimentar”.

Por ordem do Fundo, Wickremesinghe cortou gastos sociais e subsídios, privatizou estatais, impôs aumentos punitivos de tarifas de eletricidade – mais de um milhão de pessoas ficaram sem eletricidade – e também de impostos. A outra face do corte dos subsídios dos preços de bens essenciais foi a redução do poder aquisitivo e inflação contínua.

Bem que o FMI tentou recomendar aos eleitores seu carimbador. No mês passado, o chefe do bisturi do Fundo em Sri Lanka havia elogiado o “programa de reforma” de Wickremesinghe, dizendo que estava “produzindo resultados louváveis” com crescimento de 5,3% do PIB no primeiro trimestre de 2024 e arrecadação de receita “impressionante”.

Na análise de Atul Chandra e Vijay Prashad, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, o JVP foi fundado em 1965 como um partido revolucionário marxista-leninista, e encabeçou duas insurreições armadas, em 1971 e novamente de 1987 a 1989, “contra o que considerava um sistema injusto, corrupto e intratável.”

Ambas as revoltas foram brutalmente reprimidas, levando a milhares de mortes, incluindo o assassinato de seu fundador, Rohana Wijeweera, considerado por muitos como o Che Guevara cingalês, e que, segundo relatos citados pela BBC, foi queimado vivo sob custódia.

Depois de 1989, o JVP reviu suas concepções, pôs de lado o sectarismo, renunciou à luta armada e passou a organizar a luta democrática e popular e a participar das disputas eleitorais. Dissanayake é da terceira geração de dirigentes do JVP.

Segundo Prashad, apesar das profundas diferenças entre alguns dos componentes do NPP, que vão de laicos a clérigos budistas, tem havido um compromisso com um programa mínimo comum. Esse programa está enraizado em um modelo econômico que “prioriza a autossuficiência, a industrialização e a reforma agrária”.

O JVP, como força dirigente do NPP, ele acrescenta, tem pressionado pela nacionalização de certos setores (particularmente serviços públicos, como o fornecimento de energia) e pela redistribuição da riqueza por meio de tributação progressiva e aumento dos gastos sociais. Para o sociólogo indiano, permanecem “dúvidas” sobre o relacionamento do JVP com a população minoritária tâmil.

Na próxima quinzena, a missão do FMI irá retornar a Colombo, capital do país, aparentemente com disposição de botar o novo governo sob rédea curta. No mês passado, o chefe da missão, Peter Breuer, declarou sem rodeios que “a recuperação do Sri Lanka [está] em um momento crítico” e “a implementação oportuna de todos os compromissos do programa é crítica… [para] colocar a economia em uma base firme”.

O que, não escondem, inclui cortes selvagens em serviços essenciais, como saúde pública e educação, a destruição de meio milhão de empregos no setor público e a privatização/reestruturação de mais de 400 empresas estatais.

O algoz do FMI de plantão em Sri Lanka advertiu, em seu monitoramento de agosto, que o orçamento de 2025 do próximo governo precisaria ser “sustentado por medidas apropriadas de receita e contenção contínua de gastos” para garantir um “superávit primário de médio prazo de 2,3% do PIB”.

O que visa a redução da relação dívida pública/PIB para menos de 98% até 2032 – ou, dito de outra forma, “restaurar a sustentabilidade da dívida” de Sri Lanka para pagar os agiotas internacionais à custa da fome e da miséria de seu povo.

Outra herança maldita do governo Wickremesinghe é a subordinação de Sri Lanka às manobras de Washington de cerco e contenção da China e a interferência cada vez menos sutil da embaixadora norte-americana Julie Chung.

Entre os acertos subscritos por Wickremesinghe estão o Acordo de Aquisição e Serviços Cruzados (ACSA) e o Acordo de Status das Forças (SOFA). O primeiro permite o acesso militar dos EUA ao Sri Lanka e o uso de suas instalações militares; o último facilita a presença de militares dos EUA no Sri Lanka. 

O governo de Sri Lanka também enviou um navio de guerra ao Mar Vermelho para se juntar à coalizão liderada pelos EUA que tem como alvo os rebeldes houthis por seus esforços para deter o ataque genocida de Israel aos palestinos de Gaza.

Assim, para Prashad, resta ver se Dissanayake “será capaz de cumprir esse programa de soberania econômica”. No entanto – ele registra -, sua vitória certamente “encorajou uma nova geração a respirar novamente, a sentir que seu país pode ir além da desgastada agenda do FMI e tentar construir um projeto no Sri Lanka que possa se tornar um modelo para outros países do Sul Global”.

Fonte: Papiro