Lucie Castets é indicação da Nova Frente Popular para premiê | Foto: AFP

A França segue na interinidade há 54 dias, o mais longo período desde o final da II Guerra, diante da recusa do presidente Emmanuel Macron – derrotado fragorosamente em duas eleições seguidas -, em nomear um governo da Nova Frente Popular, que já indicou o nome da economista Lucie Castets, de 37 anos, para premiê.

Em suma, ele tenta ignorar o resultado das eleições parlamentares e formar um governo que seja expressão das forças derrotadas – especialmente, o macronismo.

Arbitrariedade que Macron insiste em cometer sob pretexto de evitar a instabilidade institucional, enquanto a NFP exige o cumprimento da tradição democrática de que cabe à coalizão vencedora indicar o primeiro-ministro e aplicar o programa que foi votado.

O que, quando está em contradição com a orientação do partido do presidente, como agora, constitui o assim chamado ‘governo de coabitação’, como já visto sob Mitterrand e Chirac.

Como registrou o L’ Humanité, o respeitado jornal comunista francês, a verdadeira razão para a recusa à nomeação de Castets é que, conforme Macron declarou ao L’Express, “se eu a nomear ou a um representante da Nova Frente Popular (NFP), eles revogarão a reforma da previdência, aumentarão o salário mínimo para 1.600 euros, os mercados financeiros entrarão em pânico e a França mergulhará”. Outra chantagem descarada contra o povo francês, e em prol dos especuladores e dos bancos.

A NFP chamou os franceses a se manifestarem no dia 7 de setembro contra essa tentativa de Macron de impedir que a vontade das urnas, contra o neoliberalismo e a sabujice a Washington – ele chegou até a propor enviar soldados franceses para a Ucrânia -, seja respeitada, em especial nos pontos chaves do programa da NFP.

Na eleição antecipada, em dois turnos, a NFP venceu com 193 deputados. O macronismo, por sua vez, elegeu 166 deputados. A extrema direita da RN e aliados elegeu 142, enquanto a direita tradicional (LR) obteve 47.

Se Macron tivesse preocupação pela “estabilidade institucional” ele não teria antecipado as eleições legislativas, depois de a Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen e Jordan Bardella, vencer as eleições ao Parlamento Europeu, na tentativa de pressionar os franceses para que sufragassem o macronismo para barrar a extrema direita. Eleição em que o macronismo acabaria melancolicamente em terceiro lugar.

TIRO PELA CULATRA

Mas a antecipação de eleições que só precisariam ocorrer em 2027 acabou virando um tiro que saiu pela culatra com constituição, em tempo recorde, da Nova Frente Popular, congregando socialistas, comunistas, ecologistas e insubmissos.

E com seu programa de governo centrado em restaurar a aposentadoria aos 62 anos (que Macron aumentou para 64 anos) e aumentar o salário mínimo para 1.600 euros.

Como destacou L’Humanité, o que Macron teme é que, ao exercer o poder e usá-lo para devolver direitos arrancados e dar fim ao arrocho, surja na França uma alternativa a essas políticas falidas.

“Não estou pronto para correr esse risco”, disse Macron, chantageando os franceses agora com uma suposta crise econômica se o neoliberalismo for de alguma forma estancado.

Para o Partido Comunista Francês (PCF), que integra a NFP, ao excluir a nomeação de Castets como primeira-ministra da NFP, Macron age para estabelecer um poder apoiado por seu partido, pela direita republicana e pela extrema direita, “em benefício dos mercados financeiros”.

Cujo programa é conhecido: “impor austeridade ao povo com bilhões de euros em cortes nos gastos públicos e impostos mais baixos sobre os rendimentos elevados e as multinacionais”.

Em comunicado, o maior partido da NFP, França Insubmissa, denunciou o “abuso de poder” de Macron e qualificou de “excepcional gravidade” sua decisão de não reconhecer o resultado das urnas que levaria à indicação de Castets para tentar formar um governo viabilizado pela maioria dos deputados.

AFRONTA ÀS URNAS

A negação da democracia em curso é tanto mais escandalosa – acrescenta L’Humanité – quanto, como garantidor das instituições, o presidente “não apenas deve nomear para Matignon [a sede do governo] a força política que ficou em primeiro lugar nas eleições legislativas, ou seja, a NFP, quaisquer que sejam as suas possibilidades de sucesso, mas também deve fazê-lo sem qualquer discriminação política, qualquer que seja o programa da formação com maior número de deputados”.

“O comportamento do presidente, gravíssimo e sem precedentes em toda a história da Quinta República, constitui portanto uma dupla negação da democracia”, reitera o jornal.

“O presidente também havia afirmado que nomearia Jordan Bardella para Matignon caso a RN obtivesse a maioria relativa. Só que foi a esquerda que venceu. Seria mais perigoso que a extrema direita, aos olhos do presidente?”, questiona o jornal.

“Cada dia sem Lucie Castets em Matignon constitui, portanto, um assalto à democracia e um roubo dos resultados das urnas”, sublinha o L’ Humanité.

O jornal assinala que possível aliança entre Macron e a direita tradicional dos Les Republicains (LR), capaz de ultrapassar o NFP em número de deputados, “ainda não existe, nem sequer foi proposta ao voto dos franceses”.

ACHINCALHE

Na semana passada, quase dois meses após as eleições, só então Macron iniciou uma rodada de consultas com os partidos visando formar um novo governo e, ao invés de respeitar as urnas e chamar a NFP para um governo de coabitação, passou a dizer que o nome de Castest ameaçaria a “estabilidade institucional” francesa.

Antes, Macron havia apelado para o estratagema de vetar no governo um nome da França Insubmissa, que acusava ser de “extrema-esquerda”, mas quando a NFP chegou a um nome de consenso, o de Castest, que não é da FI, o veto passou a ser a ela.

“O presidente acaba de criar uma situação excepcionalmente grave. A réplica popular e política deve ser rápida e firme”, escreveu na rede social X Jean-Luc Mélenchon, ex-candidato a presidente e líder do maior partido da NFP, a França Insubmissa. Ele denunciou que a normalidade democrática vem sendo violada por Macron, que alega que um governo “baseado apenas no programa e nos partidos propostos pela aliança com maior número de deputados, a Nova Frente Popular, seria imediatamente censurado” na Assembleia.

No segundo turno, o macronismo só não repetiu o terceiro lugar das duas eleições anteriores, porque a NFP e a aliança de centro direita de Macron retiraram seus candidatos com menos chances para favorecer aos que poderiam derrotar a extrema direita. Agora, nessas consultas, Macron obteve de Le Pen e Bardella, com quem se reuniu, a promessa de apoio a uma moção de censura contra um governo da NFP.

Fonte: Papiro