Luta contra violência à mulher exige educação e integração de toda sociedade
A Lei Maria da Penha completa 18 anos neste 7 de agosto, em meio a um cenário marcado por avanços importantes na luta das mulheres, mas também pelo aumento da violência conta elas. Se por um lado, o Brasil ganhou um mecanismo legal que criou instrumentos de apoio às vítimas e de punição aos agressores e deu maior visibilidade ao problema, por outro o país viu crescer o machismo, alimentado pela ascensão da extrema direita, com todos os seus dogmas misóginos e reacionários.
Sancionada em 2006, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a lei é vista como um instrumento avançado de combate à violência doméstica.
Batizada com o nome da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes — cujo marido tentou matá-la, deixando-a paraplégica depois de atirar em suas costas enquanto ela dormia, em 1983 — a lei inaugurou uma nova fase no combate a esse tipo de crime.
A partir dali, as mulheres passaram a ter um instrumento legal para usar em sua defesa e para combater um tipo de crime que foi naturalizado ao longo de séculos e tratado, muitas vezes, como algo em que não se devia “meter a colher”, como aludia o velho e carcomido ditado popular.
Com a lei, as vítimas de violência doméstica e familiar passaram a poder contar com medidas protetivas de urgência, como o distanciamento e o afastamento do agressor de casa ou do local de convivência; o monitoramento por tornozeleira eletrônica de acusados e a suspensão do porte de armas do agressor, dentre outras.
Além disso, criou instrumentos para coibir este tipo crime, bem como levou à criação de equipamentos públicos que permitam dar efetividade à lei, como delegacias especializadas, casas-abrigo e centros de referência multidisciplinares — como a Casa da Mulher Brasileira — e juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher, com competência cível e criminal, entre outros. Em âmbito local, alguns estados também criaram Patrulhas Maria da Penha em suas polícias, entre outras iniciativas.
A lei também inspira a mobilização do Agosto Lilás, mês em que governos, movimentos sociais e instituições se dedicam a realizar ações especialmente focadas na conscientização sobre a violência contra a mulher.
Números dramáticos
Mesmo com esses avanços e com a maior visibilidade e reação das mulheres à violência, os crimes relacionados a questões de gênero vêm aumentando. Um fator que compõe a contabilidade de algumas ocorrências é o aumento no número de denúncias, que pode ter relação com o maior conhecimento que as brasileiras passaram a ter sobre seus direitos.
No entanto, o que os números revelam de fato é o aumento no número de casos. Segundo o Anuário 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 todas as modalidades de violência contra a mulher cresceram.
As agressões decorrentes da violência doméstica aumentaram 9,8%, com quase 260 mil casos. A violência psicológica saltou quase 34%, com 38,5 mil registros. Como consequência desse quadro brutal, mais de 540 mil medidas protetivas de urgência foram concedidas pela Justiça, aumento de 26,7%.
“Quando a violência acontece, a tendência é que ela não cesse, não diminua, mas que aumente em formas e intensidade, podendo chegar, em última instância, ao feminicídio”, diz o Anuário. E os números confirmam essa análise. Em 2023, houve 1.467 feminicídios — aumento de 0,8% em relação ano ano anterior.
Desse total, 63% das vítimas eram negras, 71% tinham entre 18 e 44 anos e 64% foram mortas em casa. Os assassinos são, em sua grande maioria, homens (90%) e parceiros íntimos (63%). As tentativas de feminicídio também cresceram, marcando 7% a mais do que em 2022, com 2,7 mil vítimas.
Nesse cenário, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, destacou, via redes sociais: “Temos hoje um grande desafio: a violência contra as mulheres tem aumentado. O feminicídio também aumentou. É responsabilidade do governo fazer políticas públicas, mas é responsabilidade de todas e todos nós enfrentarmos essa violência”.
A declaração foi dada em referência ao lançamento, neste 7 de agosto, da campanha Feminicídio Zero, cujo lema é “Nenhuma violência conta a mulher deve ser tolerada”.
Conforme explica o ministério, a iniciativa faz parte de uma mobilização nacional permanente da pasta, “envolvendo diversos setores do país no compromisso de pôr fim à violência contra as mulheres, em especial aos feminicídios, a partir de diversas frentes de atuação (comunicação ampla e popular, implementação de políticas públicas e engajamento de atores diversos)”.
No caso da campanha, uma série de conteúdos impressos e virtuais, como peças audiovisuais, serão usados especialmente nas redes sociais. Além disso, influenciadores, nomes consagrados das artes e dos esportes e demais ministérios participarão de uma ampla mobilização digital, com a hashtag #FeminicidioZero.
A própria Maria da Penha está empenhada na campanha. Em vídeo, ela salientou: “Vamos juntos e juntas dizer que nenhuma violência contra a mulher deve ser tolerada e que a sociedade brasileira, de uma vez por todas, se compromete a enfrentar o feminicídio com urgência e eficácia, lutando por um futuro onde todas as mulheres vivam sem violência”.
Reflexão e reação
Na avaliação de Vanja Santos, presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM), o momento vivido pelo país pede uma profunda reflexão sobre o porquê de, mesmo com uma lei avançada existindo há 18 anos, a violência contra a mulher siga tão alta.
“Acredito que uma das questões que falta é chegar às mentes e corações das pessoas. É preciso que cada uma e cada um de nós enxergue o seu papel e a sua importância no enfrentamento a essa situação”, avalia.
Para que seja possível alcançar esse grau de envolvimento com a questão, ela defende que se invista na educação. “Para mudar certos tipos de comportamento e de leitura da realidade, bem como a construção cultural, patriarcal e machista em que nós vivemos, é necessário que a gente mexa fortemente com a educação”.
Ela citou como exemplo a iniciativa Maria da Penha Vai à Escola, viabilizada por órgãos de justiça, governos estaduais e prefeituras, para educar contra a violência.
“Trata-se de uma importante ferramenta para ensinar que as mulheres devem ser respeitadas e que os homens não são os donos dos nossos corpos, porque desde pequenos eles são ensinados a isso. E que nós, mulheres, devemos nos sentir pessoas integrais, donas dos nossos corpos, e que não devemos nada a ninguém”, enfatiza.
Além disso, ela salienta a necessidade de haver mais investimento nas ações governamentais e critica a postura da maioria dos parlamentares na Câmara e no Senado. “O Congresso é um dos mais conservadores que já tivemos. Temos parlamentares que caçoam dos direitos das mulheres. Quando falamos em envolver a sociedade, nós estamos falando em envolver também o Congresso”, aponta. Ela lembrou como exemplos de propostas que vão na contramão dos direitos das mulheres o “PL do Estuprador” e o Estatuto do Nascituro.
Ela conclui dizendo que nessa luta, “quanto mais forte for a democracia, quanto maior o envolvimento de toda sociedade, mais condições teremos de garantir avanços e mais direitos para todas e todos”.